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Atila Roque: A tortura nunca deixou de existir no Brasil
Agenda Bafafá em 30 de Maio de 2016 Informar erro
Desde o início de 2012, a Anistia Internacional, entidade que atua em mais de 70 países, abriu um escritório no Brasil para tratar da luta dos direitos humanos. Para o cargo de diretor designou o historiador e cientista político Atila Roque, figura respeitada no movimento social. Ex-pesquisador e coordenador do IBASE, foi ainda diretor da Associação Brasileira de ONGs, um dos fundadores do Fórum Social Mundial, diretor executivo da ActionAid USA e do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos. Em entrevista exclusiva ao Bafafá, Atila fala sobre diferentes temas polêmicos. Ele defende que os crimes cometidos durante a Ditadura sejam punidos e elogia a Comissão da Verdade. “É muito positiva a instalação desta comissão e nós temos acompanhado com muito otimismo”, assinala. Sobre a tortura, não titubeia: “A tortura nunca deixou de existir no Brasil. Infelizmente, ela é uma marca, uma mancha profunda na formação do Estado brasileiro”.Questionado se tem uma utopia é enfático: “A minha utopia é que o Brasil se realize como projeto democrático. Que todos possam escolher quem amar, onde trabalhar, a sua opinião e religião”. O que acha do reconhecimento dos direitos dos perseguidos pela Ditadura? Isso é fundamental. O Estado brasileiro tem uma enorme responsabilidade pela supressão e violação dos direitos humanos durante a Ditadura. O importante hoje é que o Estado reconhece isso, mesmo chegando atrasado em relação a outros países. Quanto às reparações, a Anistia Internacional não tem uma posição específica, isso é uma questão que cabe a cada país decidir. O que nós somos claramente a favor é que o Estado reconheça que violou os direitos. Quanto à forma como é feita essa reparação não cabe a nós dizer como isso deve acontecer.
Como avalia os primeiros passos da Comissão da Verdade?É muito positiva a instalação desta comissão e nós temos acompanhado com muito otimismo. Ninguém discute a qualidade de seus integrantes. Só o fato dela ter começado as audiências em diferentes esferas, ouvindo vítimas e pessoas, já criou um outro ambiente no país em relação a essa discussão. Além disso, ela suscitou a duplicação de outras comissões em diferentes circunstâncias. Universidades instalaram comissões, governos estaduais. Em menos de um ano verificamos que a agenda da comissão ganhou outra dimensão. Isso é louvável e essencial. A Anistia Internacional está bastante feliz com o trabalho da comissão e está disposta a apoiá-la no que tiver a seu alcance. Mesmo que ela trabalhe com limites legais em relação à Lei da Anistia que hoje limita a penalização dos agentes da repressão.É favorável à punição dos agentes da repressão como na Argentina, Chile e Uruguai?A impunidade é o pior caminho. Crimes graves como os cometidos durante a Ditadura como tortura, desaparecimentos e assassinatos, não prescrevem. O Brasil é signatário de tratados internacionais que nos obrigam a punir agentes do Estado que exerceram essas funções. Nós achamos sim que deve haver algum grau de responsabilização penal das pessoas que atuaram em nome do Estado. O que não podemos aceitar é o pressuposto do perdão, da não responsabilização.A Lei da Anistia no Brasil deve ser revista?Nós achamos que sim. Ela foi promulgada num contexto bastante diferente de hoje, ainda sob a Ditadura. Se agarrar a ela como pretexto para não punir os agentes do Estado que cometeram crimes não faz sentido. Existem crimes que são imprescritíveis. Sem dúvida nenhuma, achamos que a Lei de Anistia tem de ser revista sim.
Como os outros países veem a questão dos direitos humanos no Brasil?O Brasil fez a transição de uma ditadura para uma democracia pujante e conseguiu avanços importantes na luta contra a pobreza. Existe uma enorme expectativa sobre o que o Brasil pode dar de exemplo para o mundo, num momento que ele vive uma enorme crise de paradigmas. É muito importante para nós cidadãos estar ciente de que o Brasil hoje precisa liderar a construção de um modelo de desenvolvimento que produza igualdade, justiça e respeito aos direitos humanos. E não o contrário. Esta é a equação que precisamos resolver: desenvolvimento, democracia e direitos humanos a partir de um outro modelo. Existe uma enorme atenção ao papel que o Brasil tem hoje no mundo em diferentes esferas de governança global, pelo modelo, o exemplo que pode trazer para o mundo de como resolver o dilema do desenvolvimento e da democracia sem violação de direitos.Ainda existe tortura no Brasil?A tortura nunca deixou de existir no Brasil. Infelizmente, ela é uma marca, uma mancha profunda na formação do Estado brasileiro. Ela existiu durante a Colônia, a República e se agravou durante a Ditadura. Ela permanece hoje nas prisões brasileiras, onde o Estado é responsável por manter a integridade dos presos. A tortura continua sendo um instrumento de controle por parte dos agentes do Estado. É preciso romper com esta cultura, pois é crime hediondo, uma violação do direito internacional. A legislação brasileira tem instrumentos bastante eficazes para combater a tortura, que apenas precisam ser aplicados. Existe um desafio na esfera das instituições e da sociedade que ainda demonstram um patamar muito alto de tolerância, como se fosse uma coisa natural. Admitir isso como prática ofende a todos. A tortura vem sendo praticada em nosso nome. Nós, como cidadãos, não podemos aceitar que barbaridades sejam cometidas em nosso nome.O que achou da declaração do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, de que as cadeias brasileiras são medievais?Nossas prisões são sucursais do inferno. A fala do ministro Cardozo é apenas a constatação de uma realidade reconhecida pelo Estado, já que ele é a autoridade na área. Ela precisa vir acompanhada também de ações. Concordo 100%, mas agora estou esperando a próxima fala dele para dizer o que o Estado fez ou fará para resolver isso.Qual é o balanço que a Anistia Internacional faz das arbitrariedades em nosso país?Uma coisa que a gente tem percebido como uma constante é quanto o tema do desenvolvimento no Brasil permanece atrelado ao uso da violência como instrumento de controle social. É como estar numa circunstância em que a modernidade convive de forma amigável com a brutalidade. Essa contradição se apresenta em quase todas as esferas em que atuamos. Nós vemos isso nos grandes projetos de desenvolvimento que impactam a vida de comunidades indígenas e camponesas e no modo como o sistema de segurança funciona. O grande desafio, em longo prazo, é desenvolver sem violar direitos, promovendo a igualdade da justiça. O que não pode é haver persistência da violência nos processos de desenvolvimento no Brasil.Como está vendo o governo Dilma?O governo Dilma, assim como foi o governo Lula, está enfrentando esses desafios de levar o Estado brasileiro para outro patamar. Nós percebemos alguns avanços, mas ainda acho que o governo Dilma tem sido excessivamente tímido na implementação de iniciativas contra a violação de direitos no Brasil. Entre elas, nas ações no combate à tortura. Existe uma série de mecanismos que ainda continuam lentos. Outra discussão importante é a temática de desenvolvimento e direitos. A gente sabe que esse é um tema sensível no governo. Nós vimos isso na ocasião da discussão da usina Belo Monte e suas consequências junto aos povos indígenas. A negação do governo em admitir essas divergências ainda é muito forte. Isso revela o quanto o mito do desenvolvimento muitas vezes justifica muitas coisas. O governo Dilma tem suas contradições, nós esperamos que ao longo dos próximos anos sejam abertos canais de discussão destes temas. Sabemos que nada é de solução fácil, mas é importante que tenhamos coragem de abrir essas caixas de pandora e enfrentar o mal de frente.O que acha da política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro?Elas não são a solução mágica para resolver todos os problemas de segurança pública. No entanto, significaram um avanço no esforço de rever o modo tradicional de ação da polícia, que é da guerra e de confronto. A UPP tem procurado levar a ação policial a incorporar outra dimensão na sua ação, sendo mais cuidadosa na sua relação com as comunidades onde atua. É preciso sublinhar que a segurança pública é um direito de todas as pessoas, não importa onde vivam. A ação da UPP procura quebrar esse padrão a partir de um modo de intervenção que não seja do confronto. É importante como mudança de paradigmas na segurança pública.E a atuação das milícias?As milícias são o lado mais perverso da corrupção policial. Elas combinam a corrupção do Estado com a violência bruta. A milícia hoje é a chaga mais perigosa dentro do crime no Brasil. Ela tem o potencial de corromper o Estado como um todo e incorporar na sua dinâmica uma parte importante do mundo privado. A milícia requer um tratamento de grande atenção da justiça e das forças de segurança.Quais são suas prioridades frente à Anistia Internacional?Talvez a principal prioridade seja enfrentar o desafio de incorporar no repertório da sociedade, um respeito grande pelos direitos humanos. É preciso reconhecer que, como sociedade, a gente não pode aceitar violações de direitos como ainda vemos. O maior desafio da Anistia Internacional é conseguir mobilizar a cidadania brasileira para essa questão. A gente espera fazer isso em parceria com organizações brasileiras, na luta pela construção de uma cultura de direitos.Tem alguma utopia?A minha utopia é que o Brasil se realize como projeto democrático. Igualdade na diversidade, onde todos possam buscar a felicidade. Que todos possam escolher quem amar, onde trabalhar, a sua opinião e religião. De vida plena, onde todos tenham direito a uma vida de dignidade e de expressão de sua forma de estar no mundo. Quero muito viver num mundo, num país, em que isso não seja mais problema. Minha utopia é que não haja limites para a expressão da riqueza, da beleza que o ser humano tem.Dezembro 2012, entrevista concedida ao editor do Bafafá Ricardo Rabelo.
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