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Dona Ivone Lara: “Sou feliz e realizada”
Agenda Bafafá em 27 de Março de 2022 Informar erro
Dona Ivone Lara compôs o seu primeiro samba aos 12 anos e nunca mais parou. A artista, nascida em Botafogo e criada em Madureira, veio de uma família pobre, mas superou as dificuldades com a música. A vocação aflorou no internato Orsina da Fonseca, cujo coro era dirigido por Lucília Villa-Lobos, esposa do grande maestro brasileiro e de quem chamou a atenção. Paralelamente, ao lado do primo Mestre Fuleiro, passou a admirar o samba e também a compor. Mesmo num ambiente machista conquistou respeito e admiração. Não é a toa que foi a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores do Império Serrano.Formada em enfermagem, trabalhou em hospitais psiquiátricos até se aposentar em 1977. Somente a partir daí passou a dedicar-se integralmente à vida artística. Além de cantar, seus sambas foram gravados por nomes como Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre tantos outros.
Aos 90 anos, em entrevista exclusiva ao Bafafá, Dona Ivone Lara fala sobre o início de carreira, fontes de inspiração, direito autoral e muito mais. Ela será tema do samba-enredo da Império Serrano em 2012 e comemora. “Estou feliz porque eu gosto da escola, sou império doente”, garante. Questionada se tem algum sonho, não pensa duas vezes: “Sou feliz e realizada”.
Quando descobriu a vocação pelo samba? Tive uma infância muito boa. Na minha casa todos gostavam de samba, de forma que eu estava no foco. Meu primo Fuleiro morava perto e a gente adorava cantar. Quando aluna do colégio interno Orsina da Fonseca as alunas não podiam cantar sambas e marchinhas, só hinos. O Heitor Vila-Lobos tinha um orfeão artístico que se apresentava em solenidades e do qual eu fazia parte. Eu chamava a atenção dele, pois tinha uma voz rara para uma mulher: contra-alto dramático. Um dia fez questão de cantarmos o hino dele “As lavadeiras” que tinha uma parte cantada por um contra-alto. Eu cantei e ele ficou encantado, bateu palmas dizendo que eu sabia interpretar a parte mais difícil da música. Eu tinha de 13 para 14 anos, tempo em que estive internada. Foi assim que ele me descobriu.
Mulher sambista era discriminada? Eu cantava qualquer coisa, tudo era motivo para festa. Desde pequena eu gostava de cantar e compor. Descobri a vocação poética na escola quando escrevia redações e versos. A primeira música escrevi aos 12 anos e se chamava Tié, dedicada a um pássaro que eu gostava muito. Escrever era uma das minhas distrações.
Qual a melhor fonte de inspiração para compor? Eu já estou velha, de maneira que... (riso). Eu tenho sentimentos, isso ajuda. A saudade é um tema recorrente, amor, felicidade. Quando quero compor pego meu cavaquinho e faço a melodia. A partir daí eu vou tendo inspiração. Tudo é intuitivo. Mas, tem vezes que tenho inspiração sonhando. Para compor não existe fórmula. Não preciso tomar nota, só faço isso quando quero decorar a letra. Minha influência vem do meu sentimento, o que sinto é que me dá inspiração.
O que acha dos desfiles da Sapucaí? Cansei de frequentá-los. Eles estão mais para turistas do que para sambistas. Por conveniência das escolas, o ritmo está mais para marcha. Antigamente os desfiles eram grandes, por esta razão diminuíram o tempo aumentando o andamento da batida. Não tenho vontade nenhuma de descer para ir ver os desfiles, prefiro ficar sossegada. Não quero ver as coisas que eles modificaram para pior. Por esta razão me afastei.
A senhora já disputou samba-enredo? Não, nunca. Eu pertencia à ala dos compositores, mas não defendia os sambas.
Quantos sambas já compôs? Quase 400 músicas, entre sambas, marchas e valsas. Agora mesmo estou com 17 sambas inéditos.
Quais sambistas mais gosta? Ainda sou da antiga. Gosto muito do Candeia, do Cartola. Ele é mais sentimento, as músicas do Cartola se guiavam pelo amor, seus versos eram muito bonitos. O Paulinho da Viola respira nas composições que faz, também é intuitivo.
cantar com grandes nomes da MPB como Gil e Caetano? Gosto muito deles. Me deram a honra de gravar músicas minhas e ainda fizemos parcerias. O Caetano é muito musical e um grande poeta. Suas letras não são complicadas, é o que ele sente. São verdadeiras.
Qual artista a senhora destaca? Para mim é a Maria Betânia. Gosto dela demais, foi a primeira artista a gravar a música “Sonho Meu” que foi um enorme sucesso aqui e no exterior.
A senhora recebe direito autoral? Se pagassem direito eu teria um trocadinho bom que só vendo. Recebo muito pouco, principalmente do exterior, no Japão e na Europa, de onde me pagam centavos. Para mim o ECAD nunca funcionou. Agora estou com uma advogada defendendo meus direitos e tem de melhorar.
O que mudou no samba da sua juventude para hoje? Muita coisa, na minha época os sambas tinham mais melodia. Eram bonitos na letra como na música. Hoje é igual à marcha, sem aquela doçura para cantar os sambas-enredos.
Está feliz de ser o tema do samba-enredo da Império Serrano em 2012? Estou feliz. Primeiro porque eu gosto da escola, sou império doente. Estou muito entusiasmada. Tem 39 sambas disputando. Deus permita que dê certo, né?
Por que as rádios não tocam samba? Não sei o motivo para essa implicância. O samba não fez nada de mal a elas. Enquanto elas menosprezam o samba, a gente chega no exterior e é uma coisa extraordinária. Todo mundo quer cantar, aprender. Aqui não valorizam nada.
E funk, o que acha? Gosto muito de música, mas não de funk. As letras são vulgares, na verdade não tem letra. É aquele exagero até no dançar.
E o pagode é samba? Faz lembrar o samba de antigamente. É um samba mais devagar, dá vontade de dançar, apesar de hoje ser diferente. Tem muito ritmo. Pagode é um samba que conforme o ritmo dá para classificar como samba ou marcha.
O que está achando da redescoberta do samba pelos jovens? Ótimo. Surgiram letras e melodias melhores. Fico feliz, gosto muito. Outro dia mesmo fui numa festa onde estavam jovens sambistas, adorei. Meu neto, o André Luís, é um deles. As primeiras palhetadas eu ensinei, depois foi com ele mesmo. É estudioso e está mandando muito bem.
São Paulo tem mais mercado? Hoje São Paulo paga melhor, tem mais casas para shows. Dá mais valor ao samba. Gosto de cantar lá. No Rio, falta reconhecimento.
A senhora ficou feliz com a recuperação da Beth Carvalho? Demais, ela passou um sufoco. Ainda não está bem. Que tenha fé em Deus, ela merece. Estou muito feliz dela gravar um CD em minha homenagem.
E o que está achando do governo Dilma? Não me meto muito em política, mas acho que sempre é bom a mulher botar o dedinho nas coisas. Mulher cuida melhor da casa (riso). Eu continuo trabalhando, me aposentei e a minha aposentadoria nunca é reajustada.
Quem é Dona Ivone Lara? Uma pobre mulher, honesta graças a Deus, que luta para ver toda a família bem de saúde. Sou feliz e realizada.
Tem algum recado para seus fãs? Que amem o Brasil e procurem trabalhar mais a nossa música lá fora. No exterior, eles valorizaram o que é deles, ao contrário daqui onde tem lugar que só toca música americana.
Setembro de 2011
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