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  • Rosana Morgado: “A responsabilidade da população de rua é do poder público”

    Da Redação em 24 de Agosto de 2017    Informar erro
    Rosana Morgado: “A responsabilidade da população de rua é do poder público”

    O Rio de Janeiro convive com um drama cada vez maior com pelo menos 15 mil pessoas morando nas ruas. A professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, ex-diretora e coordenadora de pós graduação da unidade de ensino, Rosana Morgado, é uma estudiosa da política de assistência social. Em entrevista ao Bafafá, ela faz uma radiografia do problema no Rio de Janeiro. "Não é possível pensar na política de assistência social se ela não acontecer de forma integrada a outras políticas".
     
    Para Rosana, é imprescindível a realização de um censo que aponte as demandas da população de rua. “A verdade é que o município não tem dados a respeito. O último censo foi feito há mais de 10 anos. A população de rua é de uma diversidade muito grande”, assinala. Segundo a especialista, faltam abrigos e pessoal, além de vontade política. Ela nega que faltem verbas para este tipo de atendimento. “Isso é falso. Tem recursos e eles não estão sendo utilizados para priorizar as políticas sociais, principalmente de assistência social”. 
     
     
    Como está vendo a política de assistência social da Prefeitura carioca?
    As perspectivas não parecem ser muito boas. Apesar da nova gestão ainda ter pouco tempo para uma avaliação mais consistente, o que a gente tem acompanhado é que o atual governo Crivella, apesar de ter na Secretaria de Assistência Social quadros técnicos extremamente competentes, não tem privilegiado definitivamente uma equipe de trabalho, com trajetória consistente nesta área e com perspectiva de planejamento. Outro fato preocupante é a diretriz religiosa, inclusive, por exemplo, o censo sobre a religião dos servidores da Guarda Municipal. Tem ainda o privilegiamento de instituições privadas conveniadas com a Prefeitura. Do ponto de vista da assistência social, em particular da população em situação de rua, não se anunciam medidas que podem ser consideradas técnicas, políticas, de planejamento e de intervenção de curto e médio prazo. Não é possível pensar numa política de assistência social se ela não acontecer de forma integrada a outras políticas. O histórico do nosso município na forma de trabalhar com a população em situação de rua é muito ruim. Na gestão anterior, do Eduardo Paes, a política era a de limpeza urbana, tanto é que as ações de atenção a essa população eram coordenadas pela secretaria de Ordem Pública. Isso é um absurdo, pois a população em situação de rua não pode ser tratada como as placas que devem ser retiradas porque impedem a paisagem. A nova gestão não apresentou nenhum plano de trabalho para essa população. Não temos tido notícias frequentes de ações repressivas, a exemplo do que tem acontecido em São Paulo, mas também não temos notícia de qual é a proposta que o município tem para o enfrentamento de um fenômeno social tão grave e crônico. Nos últimos três anos o problema teve um crescimento enorme e atinge hoje 15 mil pessoas. Considero fundamental a Prefeitura fazer um censo dessa população. Sabemos que a maioria é de sexo masculino, vindos majoritariamente de outros municípios. A verdade é que o município não tem dados a respeito. O último censo foi feito há mais de 10 anos. A população em situação de rua é de uma diversidade muito grande, inclusive trabalhadores sem dinheiro para voltar para casa. Muitos deles apresentam graus diferentes de transtorno mental. Aproveito para criticar o fechamento da emergência do Pinel, pois nem com ele é mais possível contar. Há ainda aqueles que fazem uso de drogas. Esse censo poderia propiciar uma aproximação das equipes de assistência social, de defensoria pública e de saúde numa perspectiva de conhecer quais são as principais demandas e então definir para onde encaminhar essa população e quais ações devem ser desenvolvidas, para garantir a proteção destes cidadãos. 
     
    Os abrigos são a solução para a população de rua?
    Existem hoje no município do Rio de Janeiro 26 unidades de acolhimento para a população adulta. Eles deveriam ser uma garantia de proteção imediata. O curioso é que muitas vezes têm vagas, mas muitos não querem ir para lá. O problema é que elas não têm uma infraestrutura adequada, inclusive condições salubres para essas pessoas passarem a noite. Elas não têm ainda um número de profissionais suficientes para realizar entrevistas, encaminhamentos e atender a multiplicidade da demanda que essa população apresenta. Na outra ponta é preciso que haja uma integração interdisciplinar com outras políticas. A assistência social não pode trabalhar isolada da política de saúde e da inserção no mercado de trabalho.
     
    Faltam recursos também?
    Isso é falso. Tem recursos e eles não estão sendo utilizados para priorizar as políticas sociais, principalmente de assistência social. 
     
    E quanto às crianças e adolescentes?
    Ninguém está em situação de rua porque quer. Sejam maiores ou menores de idade, não é agradável morar na rua. Essas pessoas ficam expostas a diferentes tipos de violência. A questão das crianças e dos adolescentes tem que ser melhor pensada de forma estratégica para garantir a proteção deles. O uso da força nunca será uma forma de atenção adequada. As unidades de atendimento têm de ser diferenciadas embora sejam poucas para esse tipo de público. O importante é o reforço da presença dos Conselhos Tutelares. No dia 17 de agosto, foi realizada uma audiência pública convocada pela Câmara dos Vereadores para discutir o fato da Prefeitura ter levado para o Gabinete Civil a gestão dos Conselhos Tutelares. Isso não é um bom indício, os conselhos não devem estar no Gabinete Civil. Eles têm autonomia e precisam estar articulados com outros setores . Houve cortes nas equipes técnicas de assistentes sociais e de psicólogos em diversos Conselhos Tutelares. Isso sobrecarrega os profissionais que lá estão e a atividade dos próprios conselheiros. Não deixa de ser uma desproteção das crianças e adolescentes que estão em situação de rua. 
     
    Esse atendimento é despesa ou investimento?
    É um dever de Estado garantido constitucionalmente. É o direito à vida e condições dignas garantidos, inclusive, em tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, sem falar é claro em nossa própria Constituição. A proteção do Estado tem de acontecer através de políticas públicas para os cidadãos mais vulneráveis. A complexidade que faz uma pessoa ser moradora de rua é muito grande. Então, os Centros de Referência de Assistência Social - CREAS e os Centro POP - Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua têm por finalidade acompanhar essas populações. No município do Rio de Janeiro temos 14 CREAS, número insuficiente para atender crianças e adultos em situação de rua, violência doméstica contra idosos e mulheres, além de outras situações de violação de direitos que são de responsabilidade da assistência social. Se não houver articulação com outras políticas e número suficiente de profissionais para trabalhar, a gravidade do fenômeno permanece. Não é que essas pessoas não queiram sair das ruas, é preciso conhecê-las para pensar em alternativas de curto, médio e longo prazo. Se uma pessoa está há 10 anos morando nas ruas da cidade é porque a complexidade dela é muito grande. Neste caso, já perdeu os vínculos familiares e provavelmente já há comprometimento da saúde mental.
     
    Terceirizar o atendimento seria uma solução?
    Não é uma solução. A gente tem visto isso na saúde do município. É falsa a ideia de que a terceirização economiza recursos. Várias pesquisas e dados apontam o contrário. Além disso, propicia que as organizações contratadas acabem não cumprindo o objetivo para o qual se candidatam. Na saúde temos visto desvios de dinheiro, distorção na relação salarial com os profissionais concursados, descontinuidade do atendimento em caso de atraso do repasse da verba e, o pior, muitas vezes os critérios utilizados para a contratação dos profissionais não são republicanos. Além disso, parte dos contratados não têm currículo nem trajetória para isso. 
     
    Quanto aos dependentes de crack, o que pode ser feito?
    O dependente de crack certamente tem um comprometimento maior no campo da saúde do que alguém que mora na rua por estar desempregada. Existem variados níveis de complexidade. Reprimir do ponto de vista “higienista” nunca se apresentou como solução. Aqui no Brasil, o poder público se recusa a implantar uma política implementada em outros países que se chama “redução de danos”. Por ela, há um acompanhamento do ponto de vista da saúde, distribuição de seringas descartáveis, locais seguros para a utilização da droga e um trabalho profissional de acompanhamento destes usuários. Isso precisa estar associado ao campo da saúde e não ao campo da segurança pública. 
     
    Como vê a iniciativa de lojistas de instalarem “chuveirinhos” nas calçadas?
    Essa atitude beira o fascismo. Isso revela o quanto os grupos de extrema direita ganham cada vez mais força e sem prurido de se expressar. Basta lembrar o fato que aconteceu com o refugiado sírio em Copacabana. Instalar chuveirinhos nos prédios significa tratar essa população de rua como algo absolutamente descartável. É como se fossem sujeiras que incomodam as portarias dos prédios. Quem defende isso não está interessado em saber como pode coletivamente contribuir para que essas pessoas não tenham que submeter-se a isso. Isso não respeita a dignidade de um ser humano e de enfrentamento do problema. Os lojistas não pensam como seres coletivos para a coletividade. Tratam a população de rua como vagabundos como se ele fosse feliz com essa condição degradante.
     
    População de rua é um drama insolúvel?
    Não acredito nisso. Infelizmente o caminho ainda será longo para enfrentar esse drama, inclusive pelas implicações econômicas que estamos vivendo particularmente em nosso estado. A responsabilidade é do poder público, pode fazer parcerias, mas sem perder a primazia da condução da política. As entidades religiosas têm seu lugar, assim como os empresários e as instituições filantrópicas. 
     
    Entrevista concedida ao editor do Bafafá, Ricardo Rabelo.
    Agosto de 2017
     
     


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