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  • Sérgio Ricardo: A minha utopia é minha vida

    Agenda Bafafá em 23 de Julho de 2020    Informar erro
    Sérgio Ricardo: A minha utopia é minha vida

    Compositor, cantor, dramaturgo, poeta, pintor e cineasta, Sérgio Ricardo, nome artístico de João Lutfi, nasceu em Marília (SP) em 1932. De origem síria, radicado no Rio de Janeiro desde 1952, se apaixonou pela cidade de onde nunca mais saiu.
     
    Tocando em boates e bares, conheceu artistas como Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra e fez parte do primeiro núcleo de compositores da bossa nova, nos antológicos saraus musicais na casa de Nara Leão. Na década de 60 participou de diversos festivais da canção, entre eles, o da TV Record de 1967, onde ficou famoso por quebrar o violão em pleno palco ao ser vaiado pelo público.
     
    Sobre o episódio, explica: “Ali, só um cara banana não faria nada, ficaria com o rabo entre as pernas”. Com mais de 20 discos gravados, diretor de quatro filmes, autor de dezenas de trilhas sonoras, é um dos artistas mais engajados politicamente do país. Suas opiniões, sempre sinceras e abertas, riscaram seu nome da grande mídia durante anos. “Sofri um castigo que perdura até hoje que foi a proibição do meu trabalho nos meios de comunicação. Tinha até um memorando na TV Globo neste sentido. O pessoal esqueceu que a Ditadura acabou e me boicota até hoje”, ironiza o artista que acaba de completar 80 anos.
     
    Em entrevista ao Bafafá, Sérgio Ricardo fala sobre a sua juventude, primórdios da carreira, bossa nova, festivais e, claro, política. Ele mostra-se um tanto desiludido com este tema. “O homem está perdendo completamente a sua capacidade criadora de transformação. Hoje está todo mundo cético, esperando o fim do mundo ao invés de tentar salvá-lo”, fuzila o artista. Questionado se tem alguma utopia, não titubeia: “A minha utopia é minha própria vida”.
     
    Como foram sua infância e juventude?
    A melhor possível. Fui criado no interior de São Paulo onde havia todas as condições oníricas para um jovem poder viver uma vida bonita (riso). Minha formação é mais artística do que acadêmica. Meu pai era músico amador, tocava alaúde nas horas vagas. Desde pequeno tive uma tendência às artes, principalmente à música. Eu era o melhor desenhista da escola e não admitia que alguém tirasse uma nota maior do que a minha (riso). Era bom aluno em português e história, já em outras matérias como matemática e inglês era péssimo (riso).  Meu forte não eram as exatas, mas me faz falta, pois me faltou assimilar a organização, a coisa lógica (riso). Sou o rei da “ilógica”, minha vida é uma bagunça que nem eu entendo (riso).
     
    Quando descobriu a vocação de músico?
    Estudei piano no conservatório de Marília e ainda moço fui ser locutor da rádio Cultura em São Vicente, litoral de São Paulo. Com isso fui tomando contato com a música. Só me interessava a discoteca da rádio, tinha acesso a discos de música clássica, popular e ao jazz. Graças a isso tive uma grande formação auditiva que veio a se fortalecer com o passar do tempo quando meu estilo de tocar piano passou a ser mais popular.Quando a cabeça começou a amadurecer vim para o Rio de Janeiro. Frequentei a Escola Nacional de Música e tive vários professores de música apesar de não ter sido diplomado. Não me interessava diploma, fui aprender com Guerra-Peixe, Moacyr Santos, etc. Abandonei os estudos quando comecei a trabalhar na noite onde aprendi mais (riso).
     
    Como foi chegar ao Rio de Janeiro aos 20 anos?
    Em 1952, um tio me trouxe para fazer um trabalho de locutor em um programa árabe na rádio Vera Cruz. Depois minha família se mudou para a cidade, no bairro de Sampaio, onde de fato começou a minha vida musical. Comecei a tocar nas boates onde conheci Tom Jobim, Johnny Alf, João Gilberto, João Donato. Eles faziam um trabalho distante da mídia, mas muito enfronhado na noite carioca. Era um bom aluno desse pessoal, ficava de olho em todos e fui absorvendo muita coisa.
     
    Você foi um dos protagonistas da Bossa Nova?
    Os que estavam fazendo a verdadeira música popular estavam marginalizados, trabalhando em boates e bares. O que interessava as gravadoras era o bolero que tinha uma penetração mais popular. O brasileiro já estava virando bolerista (riso). Até que na gravadora Odeon apareceram pessoas com um pouco de visão e descobriram que havia um movimento musical novo na casa da Nara Leão. Era um estilo superior ao que se fazia no próprio samba. Era uma invenção do João Gilberto que descobriu uma forma diferente de tocar o samba, uma forma mais rica harmonicamente que acabou contaminando uma geração. Todos nós fazíamos composições, melodias e ritmos, mas ele conseguiu condensar tudo numa coisa só, simplista. Contaminou a mim, João Donato, Tom Jobim, Carlos Lyra. Era uma batida gostosa (riso). Ai veio o Vinícius de Moraes e começou a escrever letras para as músicas. Ficou interessantíssimo, entrou na cabeça das pessoas uma linguagem que irradiou.  Foi uma explosão, ganhamos a mídia e conquistamos o coração do brasileiro (riso).
     
    A repercussão foi internacional?
    Sim. A música era de alto nível tanto que o jazz americano se interessou e adotou essa linguagem. Isso numa época que a única vanguarda musical era o jazz (riso). A grande verdade é que houve uma troca, um estilo contribuiu com o outro. A beleza melódica e harmônica veio do jazz. Acontece que a gente tinha a nossa também. O swing e o balanço são uma coisa só. No entanto, o samba era muito mais rico do que o fox americano. A bossa nova pegou nos Estados Unidos. Tanto que o Frank Sinatra gravou um LP com músicas de Tom Jobim totalmente dedicadas ao estilo. Ele nunca tinha gravado nenhum disco de um só autor. O Jobim era a maior expressão nossa porque ele conseguia sintetizar tudo. Ele era um talento extraordinário. Seu trabalho foi uma obra prima da primeira à última música. Ele foi o maior compositor do século XX.
     
    No início da carreira, Chico Buarque era muito seu fã. Ele conta que o conheceu em São Paulo e mostrou suas músicas para você avaliar. Isso é verdade?
    Sim, eu estava ensaiando para um show e precisava de um banquinho para tocar. Foi quando o Chico foi até a faculdade ali perto e arrumou um. Ele também mostrou as suas músicas “Pedro Pedreiro” e “Olê Olá”. Fiquei maravilhado e disse para mim mesmo que gostaria de ter composto qualquer uma delas (riso). Quando já era conhecido me chamava de titio, pois sempre eu dava conselhos para ele não cair em certas esparrelas (riso).
     
    Na década de 60 vieram os festivais. Em quantos participou? Acho que oito ou dez festivais. Eram o xarope da época, o único jeito que tínhamos para extravasar alguma coisa.
     
    O mais polêmico foi o da Record em 67 quando quebrou o violão ao ser vaiado pelo público? Eu sou da geração de 60. Antes disso, fui um experimentador dentro da bossa nova. Depois disso fiz da minha arte um instrumento de transformação. Não quis usar a minha arte pelo simples prazer “pavãonista” de me achar lindo. Eu quis fazer dela uma arma e até hoje continuo dando tiro para o alto. No festival foi a mesma coisa, aquilo era uma coisa manipulada. Os artistas que participavam eram meus amigos e nunca tive problema com eles. O que aconteceu foi o seguinte: a música que antecedeu a minha foi Ponteio, de Edu Lobo, que acabou ganhando. Acontece que quando fui cantar o público não queria ouvir mais nada e passou a vaiar todas as demais. Ali, só um cara banana não faria nada, ficaria com o rabo entre as pernas. Eu era ídolo de alguns artistas que se apresentavam. Aumentaram o som para eu não ouvir as vaias e não gostei. Não tenho o menor arrependimento de ter quebrado o violão, se fosse hoje poderia quebrar um cavaquinho (riso).
     
    Você participou ativamente da luta pela redemocratização. Como foi?
    Antes e depois do golpe militar eu era engajado na política, compondo temas sociais. Sofri um castigo que perdura até hoje que foi a proibição do meu trabalho nos meios de comunicação. Tinha até um memorando na TV Globo neste sentido. O pessoal esqueceu que a Ditadura acabou e acabou me esquecendo (riso).
     
    Como está vendo a atual conjuntura?
    O homem está perdendo completamente a sua capacidade criadora de transformação. Hoje está todo mundo cético, esperando o fim do mundo ao invés de tentar salvá-lo. O que falta na verdade é informação. O homem, no entanto, não é uma besta, um pedaço de pau. Precisamos discutir e apontar caminhos. Mas é preciso ter soldados para isso (riso).
     
    Algum estilo semelhante ainda pode surgir?
    Eu fico esperando que em algum momento surja um novo movimento musical no Brasil. Pode haver um seguimento da bossa nova. Ela perdeu força por causa do rock que invadiu o mercado. Está mais do que na hora de novidades. O certo (e você não vai poder publicar) é que está havendo uma escrotidão com a música brasileira.
     
    Fale sobre o cordel João/Joana, que criou com Carlos Drummond de Andrade e que foi reapresentado em Brasília recentemente. Como foi a apresentação no Teatro Municipal, quando comemorou 50 anos de atividades artísticas?
    Até agora a única apresentação no Rio de Janeiro deve-se ao produtor Adonis Karan e ao pesquisador Ricardo Cravo Albim. Foi uma noite sensacional que reuniu meus grandes amigos. Foi o trabalho mais importante que fiz na cidade, tinha a Orquestra Sinfônica a minha disposição. Devo, no entanto, a Ivan Fortes a recente e a primeira apresentação do concerto em Brasília, de enorme sucesso.
     
    Você mora no Vidigal há muito tempo. Há anos você escreveu uma peça chamada Bandeira de Retalhos, que está em cartaz no Teatro do Planetário fazendo muito sucesso. Fale sobre ela.
    Sou o autor da peça, das músicas e diretor musical. Esse projeto nasceu da minha convivência aqui no Morro do Vidigal onde moro há mais de 30 anos. Foi inspirado no movimento contra a derrubada de vários barracos na favela que teve apoio até do advogado Sobral Pinto. Acabamos impedindo finalmente a derrubada para que fosse construído um complexo hoteleiro. A peça retrata tudo isso com atores do grupo Nós do Morro, da própria comunidade. Ela está em cartaz no Teatro Planetário, as sextas, sábados e domingos, dirigida por Ruth Fraga e Fátima Domingues.
     
    Como está vendo o governo da Dilma? Acho a Dilma uma heroína, não tenho queixa nenhuma. Ele é a figura comovente da história do Brasil, talvez a vida mais incrível de um cidadão brasileiro. Foi torturada cruelmente e se tornou Presidente da República. Só por ai já tenho respeito por ela como ser humano. Por melhor que ela seja não acredito que venha a transformar o país que está todo vendido. O poder econômico tomou conta disso aqui. O governo não é a Dilma, o governo é o banco. Ela está tentando mudar isso, mas sozinha não sei se vai conseguir.
     
    Quais são seus planos para o futuro, agora que completou 80 anos?
    Estou com dois filmes prontos para rodar, a cata de produtor. Tenho também muitas músicas inéditas que não consigo gravar. Minha vida é uma tentativa (riso). Não estou preocupado com os resultados, estou preocupado em fazer.
     
    Você tem alguma utopia? A minha utopia é minha própria vida (riso). A utopia é a melhor coisa que o indivíduo pode ter na vida. É a maior mulher que ele pode ter! A utopia é uma mulher fantástica. Você busca, busca e não encontra (riso). O bonito é a busca! Para mim, a utopia é um papel em branco sobre o qual nos debruçamos. Uns só fazem garranchos, outros transformam o mundo. Eu não vejo o Nós do Morro fazendo garrancho nenhum.
     
    Quem é Sérgio Ricardo? É uma besta quadrada (riso) que podia estar rico, fazendo gracinha e musiquinhas para todo mundo cantar. Poderia estar concedendo aqui e ali para levantar meu rabo e mostrar o pavão. Eu tenho impressão que nem rabo tenho (riso).
     
    Julho 2012, entrevista concedida ao editor do Bafafá, Ricardo Rabelo.


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