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  • José Maria Rabelo: "Parece que estamos chegando ao fim de uma era"

    Da Redação em 23 de Março de 2022    Informar erro
    José Maria Rabelo:

    Considerado um dos precursores da moderna imprensa alternativa no Brasil (“o avô do Pasquim”, segundo Ziraldo), o jornal Binômio (1952-1964) foi uma pedra no sapato das oligarquias mineiras. Fechado pelo golpe militar de 64, seu diretor José Maria Rabêlo teve de exilar-se em três países (Bolívia, Chile e França) durante 16 anos, até a anistia em 1979.

    Pai de sete filhos, entre eles o editor do Bafafá Ricardo Rabelo, José Maria foi uma das figuras mais procuradas pelos militares devido a um incidente que tivera com o general João Punaro Bley, comandante das forças do Exército em Belo Horizonte.

    Dois anos antes do golpe, irritado por causa de uma reportagem narrando suas truculências como interventor do Estado Novo no Espírito Santo, o general compareceu à redação do Binômio para um acerto de contas com o jornalista. Agredido, Rabêlo se defendeu e, no desforço em que os dois se envolveram, o militar levou nítida desvantagem. Como represália, 200 homens das unidades do Exército e da Aeronáutica, chefiados pelos seus respectivos comandantes, invadiram o jornal, destruindo-o por completo.

    A violência teve repercussão em todo o País e até no exterior. Quase 50 anos depois, José Maria comenta: “Foi deplorável, uma bestial agressão à liberdade de imprensa. Não me arrependo da reação que tive, porque defendi minha dignidade pessoal e profissional, agredido que fora em minha mesa de trabalho.” O curioso é que para não ser preso Rabêlo fugiu da cidade vestido de padre. “Recentemente recuperei a batina”, informa, “que vou doar ao Museu da Anistia, que está sendo montado em Belo Horizonte”. Para ele, apesar de todos os retrocessos, o mundo avança no sentido de uma nova sociedade, socialista e democrática. “A crise atual”, acredita, “pode ser a parteira dessa nova sociedade”.
     
    Rabêlo, em entrevista ao Bafafá, fala de sua vida no interior e em Belo Horizonte, da criação do Binômio e das perseguições que sofreu, de seus três exílios, do governo Lula e de outros episódios de sua atribulada história.
     
    Como foram sua infância e juventude no interior de Minas?
    Nasci em Campos Gerais, no Sul de Minas, em 1928. Perdi a mãe com dois anos e, ao lado de 10 irmãos, fui criado pelo meu pai e a minha madrasta Calypsa, que sempre me tratou como filho. Como não havia ginásio lá, estudei em Alfenas, Três Pontas e Guaxupé, também no Sul de Minas. Desde jovem tive inclinação literária, gostava de ler, de teatro. Isso me abriu os olhos para a vida.
     
    Quando lançaram a bomba atômica em Nagasaki e Hiroshima foi um acontecimento mundial, era a primeira vez que o homem fazia uso da energia nuclear. Eu não tinha bem idéia do que fosse aquilo, os jornais chegavam na cidade com atraso. Mas eu estava sempre antenado, procurando saber o que acontecia. Lembro-me de um episódio muito engraçado, durante a Copa de 1938, na França. As emissoras pediam a quem tinha rádio que pusesse alto-falantes nas janelas para que todos na rua ouvissem a transmissão.
     
    Um cidadão de Campos Gerais, tido como um dos mais bem informados, da família Abdala, resolveu fazer uma experiência: pegou o rádio da casa em que estávamos e usou um abajur, daqueles antigos em forma de prato, e o ligou com um fio ao aparelho, como se fosse um alto-falante. Claro que não podia dar certo. Queimou o rádio e nós ficamos sem saber nem o resultado do jogo (riso).
     
    Conte sobre sua ida para Belo Horizonte.
    Quando eu tinha 17 anos, papai resolveu morar em Belo Horizonte para que todos os filhos pudessem estudar, pois em Campos Gerais não havia ginásio. Ele era dentista, pretendia abrir um consultório na Capital e comprou uma pensão para abrigar os familiares e receber hóspedes. Parecia ser uma solução muito sábia. No entanto, já começou com um erro estratégico: eram 17 pessoas na comitiva entre parentes e agregados (risos), de modo que sobravam poucas vagas para alugar. E ainda por cima, papai foi vítima de uma vigarice, pois comprou a pensão sem saber como estava a situação do imóvel.
     
    Na verdade, ele tinha comprado apenas os móveis, e logo depois o proprietário pediu a devolução da casa. Resultou que todo mundo voltou para Campos Gerais, à exceção de mim. Não queria ouvir rádio com estática no abajur do Abdala. Fiquei sozinho em Belo Horizonte. Era uma cidade de 280 mil habitantes, capital do Estado, grande para mim. A adaptação, porém, foi rápida. Comecei a fazer o ginasial com a ajuda do meu pai. Depois de seis meses, arrumei um trabalho e dispensei a ajuda. O trabalho era de locutor do terminal de bondes da Praça Sete, no centro da Cidade.
     
    No outro lado do terminal quem ocupava o microfone era o Mauro Santayana, hoje jornalista famoso. Aliás, excelente jornalista, mas péssimo locutor. Como o salário era baixo, fiz um acordo com o Jacarandá, que tinha uma banca de frutas no local. Ele pagava 10 inserções por dia e eu veiculava 20, para garantir o almoço. Passei uns meses comendo só frutas. O Jacarandá depois se tornou figura popular em Belo Horizonte. Estava sempre metido com mulheres e entrou para a crônica policial porque deu um beijo tão forte numa prostituta que tirou o globo ocular da infeliz. Isso virou assunto nacional.
     
    De que forma surgiu a vocação para o jornalismo?
    Ainda muito cedo, na escola, redigia jornaizinhos, fazia teatro, inventava coisas. Mais tarde, já em Belo Horizonte, entrei pelo caminho do jornalismo. Na época, não havia cursos de comunicação, a seleção era feita levando em conta a vocação do jovem, seus conhecimentos de Português, História, assuntos gerais etc. Nessa primeira fase, vendia anúncios para uma revista chamada Cultura Magazine, cujo diretor está vivo ainda hoje, meu grande amigo e inspirador Washington Albino, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
     
    Depois ele me levou para ser repórter do Informador Comercial, o atual Diário do Comércio, de grande conceito na imprensa belo-horizontina. Eu era muito empenhado na busca da notícia, não tinha medo nem preguiça, aquilo que era chamado de repórter furão.
     
    Como aconteceu a ideia do jornal Binômio?
    Foi em 1952, quando conheci o também jornalista Euro Arantes e resolvemos fazer um jornal diferente. Nos preocupava a situação de bajulação, de servilismo da imprensa mineira. O governo do Estado controlava a imprensa de maneira total, o que aliás, em linhas gerais, acontece até os dias de hoje. O Juscelino tinha sido eleito governador e era um entusiasmado adepto da propaganda, em grande parte responsável pelo seu prestígio.
     
    A Cidade recebeu o Binômio com o maior entusiasmo. No primeiro número, tiramos dois mil exemplares. Era uma edição feia, mal diagramada e impressa numa gráfica vagabunda que arrumamos no subúrbio, pois não tínhamos dinheiro para coisa melhor. Fez tanto sucesso que tivemos que reimprimir duas vezes, totalizando seis mil exemplares, o mesmo que vendia o jornal Estado de Minas, o maior de Belo Horizonte. Naquele tempo, tudo acontecia na Praça Sete, em pleno Centro. Bastava colocar 20 ou 30 meninos gritando as manchetes do jornal para que toda a população tomasse conhecimento.
     
    Foi difícil criar um jornal com tão pouco dinheiro?
    Sim, foi. Por isso fizemos um jornal humorístico, de crítica política, que não exigia grande número de páginas e, por isso, mais barato. Belo Horizonte tinha então 30 cinemas, quase todos de um cidadão mafioso chamado Antônio Luciano, que povoou a história da Cidade com suas tropelias, por mais de 50 anos. Banqueiro e especulador imobiliário, tinha a maior fortuna do Estado e uma crônica sentimental e erótica das mais extravagantes. Chegou a ter 70 filhos, inclusive os que teve com duas filhas, segundo consta do inventário de sua herança.
     
    Este personagem tinha como especialidade a defloração de meninas, numa incontrolável atração por virgens. Seus ajudantes eram encarregados de aliciar as jovens, geralmente pobres, conduzindo-as ao Hotel Financial, de sua propriedade, onde mantinha uma espécie de harém. Na época (1952), houve um quebra-quebra nos cinemas, quando os estudantes reagiram contra o aumento do preço dos ingressos. O Binômio saiu com a seguinte manchete: “Apesar de depredados pelo povo, o Sr. Antônio Luciano mandou reabrir todos os seus cinemas. É um homem que não pode ver nada fechado” (risos). A piada repercutiu como uma bomba na pequena cidade provinciana e moralista.
     
    A relação do Binômio com Belo Horizonte foi um caso de amor à primeira vista. No terceiro número o jornal já se pagava com a venda avulsa. Jovens, eu e o Euro, com pouco mais de 20 anos, nos entusiasmamos e começamos a pisar fundo. Éramos acusados pelos inimigos de editar uma publicação imoral, que atentava contra os costumes da tradicional família mineira.
     
    Chegaram até a pedir sua proibição. Teve um número que nós anunciamos como impróprio para menores de 18 anos. Ele não poderia ser exposto nas bancas, os chefes de família não deveriam levá-lo para casa. A polícia se preparou para apreender o jornal, pois se nós mesmos dizíamos que era imoral, imaginem o que deveria ser. Nós circulávamos no domingo de manhã, mas antecipamos para sábado.
     
    Dobramos o número de meninos gritando “Binômio, Edição Imprópria”, enchendo o centro da Cidade. Quando a polícia acordou, a edição estava esgotada. O que trazia de tão especial? Nada mais nada menos do que transcrições dos jornais “sérios” que nos combatiam.
     
    Destacávamos as inconveniências que diziam, mas que se perdiam espalhadas no meio de suas páginas, sem que ninguém se desse conta. Reunidas, transformavam-se em verdadeira antologia de histórias picantes e até escabrosas. Tinha coisas incríveis. Entre elas, um despacho publicado no Minas Gerais, órgão oficial do governo do Estado. Era o caso de uma professora que pedia a juntada do sobrenome Pinto ao nome.
     
    O despacho era enfático: “Para juntar o sobrenome Pinto, ela deve provar que tem Pinto”. E sentenciava: “Defiro a Dona Heroína de Freitas o uso do Pinto desde que prove sua existência” (risos). Havia outras matérias do mesmo estilo ou piores ainda. A repercussão da edição foi tão grande que nossos acusadores nunca mais falaram no assunto. Fechamos a boca deles.
     
    Quando se deu o auge do Binômio?
    O Binômio teve três fases. A primeira, crítica e humorística, a segunda, panfletária e denunciadora e, por último, a de grandes reportagens, concentrada no debate dos problemas da atualidade e apoiando as reformas de base do governo Goulart.
     
    Publicamos matérias sensacionais, que repercutiram até no exterior. Era um jornalismo independente, de alta qualidade, que deixou marcas profundas, embora certas antologias da imprensa, editadas no Rio e São Paulo, omitam sua existência.
     
    Em 1958, chegou a tirar 60 mil exemplares, o que era um feito espantoso numa cidade, na época, de 600 mil habitantes. Juscelino deixava o governo e entrava Bias Fortes. Tratava-se de um cidadão truculento, saído das cavernas políticas de Barbacena.
     
    Ele pressionou as gráficas a não imprimir o Binômio, obrigando-nos a editá-lo no Rio de Janeiro. Foi o primeiro jornal brasileiro a ter que se exilar, pois o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, já nasceu no exterior, em 1808, não existindo antes no Brasil.
     
    No Rio, as gráficas eram mais bem equipadas e passamos a apresentar a melhor impressão de Belo Horizonte, introduzindo inclusive o uso da cor. Posteriormente lançamos uma edição em Juiz de Fora, na época muito afastada de Belo Horizonte.
     
    O Fernando Gabeira começou lá. Numa greve de estudantes secundaristas, nós gostamos do texto de um manifesto dos grevistas que depois ficamos sabendo haver sido escrito por ele. Foi trabalhar conosco e acabou fazendo uma brilhante carreira jornalística, sendo hoje intrépido candidato a governador do Estado do Rio.
     
    E o episódio do empastelamento do Binômio?
    Aconteceu em dezembro de 1961 e foi um incidente que marcou toda a história do jornal. O comandante da ID-4, IVª Infantaria Divisionária, que controlava as guarnições do Exército em Belo Horizonte, General João Punaro Bley, conspirava a favor do golpe militar, fazendo palestras sobre “os perigos da infiltração comunista no governo Goulart e as ameaças à democracia”.
     
    Apesar de seus pronunciamentos terem tido bastante repercussão, ninguém sabia quem era aquele general. Descobrimos que havia sido interventor no Espírito Santo durante o Estado Novo e praticado as maiores arbitrariedades contra jornalistas, intelectuais e outras pessoas da oposição. Enviamos dois repórteres ao Espírito Santo, entre eles, o José Nilo Tavares, depois professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, infelizmente, não está mais entre nós.
     
    Eles trouxeram um material impressionante. Publicamos então uma reportagem contundente, sem carregar na adjetivação, apenas contando a história dele. A manchete estampava: “Quem é afinal esse General Punaro Bley? Democrata hoje, fascista ontem”.
     
    O jornal circulava na segunda-feira. Na quinta seguinte, recebo um telefonema de alguém que se identificava como sendo o general Punaro Bley, querendo “ter um encontro comigo”. Até pensei que fosse trote, o que sempre acontecia quando publicávamos uma reportagem mais brava.
     
    Passados 20 minutos, minha secretária, bastante nervosa, chegou dizendo que um militar estava na recepção e queria falar comigo. Eu tinha um esquema para receber os ofendidos. Deixava eles esperando para pensar bem nas consequências do que iriam fazer.
     
    O general ficou ainda mais nervoso com a espera e exigia ser atendido logo. Entrou pelo corredor e eu lhe pedi para trancar a porta. Estava fardado, com suas insígnias e segurando o bastão de comando numa mão e um exemplar do Binômio na outra.
     
    Convidei-o a sentar, ele respondeu com uma grosseria: “Não vim conversar, quero saber quem escreveu esta merda contra mim”. E jogou o exemplar em cima da minha mesa. Eu disse a ele: “Aqui eu sou responsável por tudo que é publicado”.
     
    Num gesto de ira, ele retrucou: “Então o senhor é um filho da puta” e partiu para cima de mim, jogando-me contra a vidraça da janela atrás da mesa, ferindo-me nas costas, pois o vidro se partira. Perdi a cabeça. Ele era forte, de robusta compleição física, apesar de não ser um jovem. Trocamos vários socos, rolando pelo chão. Foi terrível. Quando os colegas do jornal entraram na sala, atraídos pelos ruídos da luta, separando-nos, verifiquei que ele estava ferido.
     
    Lamento até hoje o que houve, mas não tinha saída. Defendi minha dignidade, agredido que fora em minha mesa de trabalho. Em seguida, ele se retirou, mas antes o ajudante de ordens dele entrou na sala e disse: “Isso não vai ficar assim, não”. E não ficou. Duas horas depois, mais de 200 homens do Exército e da Aeronáutica, chefiados por três coronéis (comandantes do 12ºRI, Regimento de Infantaria do Exército, da Base Aérea e do CPOR), invadiram a redação. Fecharam a rua ao trânsito, desviaram as linhas de ônibus. Não sobrou nada do jornal, até as instalações sanitárias acabaram destruídas.
     
    Naturalmente eu já não estava mais lá. Saí pouco tempo antes, levando a contabilidade, arquivos fotográficos e documentos importantes, porque imaginei o que estava por vir.
     
    Fugiu de Belo Horizonte vestido de padre, é verdade?
    Peguei uma batina emprestada com o Padre Francisco Lage, que era um sacerdote identificado com as lutas populares e que seria cassado pela Ditadura, e saí da Cidade de carro com destino a São Paulo. Lá permaneci uma semana, tendo recebido a solidariedade dos companheiros do Sindicato de Jornalistas.
    O interessante é que a batina apareceu recentemente – estava guardada com minha cunhada Warenka, no Rio. Pretendo doá-la ao Museu da Anistia que está sendo montado em Belo Horizonte. Voltei em seguida, reassumindo a direção do Binômio que, em minha ausência, foi assumida por outro grande companheiro, o jornalista Guy de Almeida. Foi um período muito duro, em que tive de conviver com as contínuas ameaças de gente ligada ao general.
     
    Este fato causou o seu exílio dois anos mais tarde?
    Em 1964, com o golpe militar, estava na primeira lista de procurados. Os militares queriam desfilar comigo, enjaulado e semi-nu, pelas ruas de Belo Horizonte, como fizeram com o Gregório Bezerra, em Recife. A intenção era me desmoralizar. Novamente parti para São Paulo, onde cheguei disfarçado de vendedor de café. Fiquei lá um tempo para ver se haveria resistência. Como isso não aconteceu, fui para o Rio, onde me asilei na embaixada da Bolívia, que era uma das poucas que ainda não tinham se transferido para Brasília.
     
    Foi quando começou a sua história no exílio?
    Segui para a Bolívia onde, meses depois, aconteceu um golpe militar, inspirado pelo governo brasileiro. Viajei então para o Chile, tendo permanecido lá durante nove anos, acompanhado de minha mulher Thereza e dos sete filhos. Aí peguei outro golpe, desta vez para derrubar o governo socialista de Salvador Allende, igualmente apoiado pelos militares brasileiros.
     
    No Chile, mesmo tendo uma atuação discreta, me incluíram na primeira lista das pessoas que teriam de se apresentar ao Ministério da Defesa, em 24 horas, sob pena de fuzilamento, como dizia o ato oficial divulgado em todas as emissoras. O golpe chileno foi violentíssimo, pior ainda que o do Brasil. Basta ver que foram mais de três mil mortos, numa população de 10 milhões de pessoas.
     
    Fale sobre a permanência na embaixada do Panamá, em Santiago
    Dividíamos um apartamento de 150m² entre mais de 300 pessoas. Foi horrível, a gente dormia um em cima do outro. Quando a situação sanitária ficou crítica, ameaçando a vizinhança, os militares permitiram que a embaixada se mudasse para uma casa que, por coincidência, pertencia ao sociólogo brasileiro Theotônio dos Santos, que a emprestou ao governo do Panamá. Ele estava asilado conosco e tinha acabado de comprá-la. Quando saímos do Chile, a ditadura se apropriou do imóvel e o transformou num centro de tortura. Com o fim do regime militar, Theotônio recuperou a casa e a vendeu.
     
    Com o golpe no Chile, você acabou indo para a França?
    Não falava praticamente nada de francês, só algumas poucas palavras como “Bom jour”, “Bom soir” e “Merci Beaucoup”. Fomos muito bem recebidos pelos franceses, já que a experiência no Chile teve grande impacto na Europa, pois era a primeira vez que um governo socialista chegava ao poder pelo voto. Em Paris e nas imediações da cidade, há mais de 200 ruas, praças e outros locais com o nome de Salvador Allende. Tive sorte porque conheci o Mário Soares, o líder da resistência portuguesa e futuro presidente da República, que também estava exilado em Paris.
     
    Ele tinha uma livraria portuguesa e me convidou para trabalhar lá. Com o fim da ditadura em Portugal e o retorno de Soares ao país, criei outra livraria, tendo o Miguel Arraes como sócio capitalista. Ele ganhou muito dinheiro com a construção de uma grande rodovia na Mauritânia e com negócios de petróleo na Argélia. A livraria ficava em plena Rue des Écoles, pertinho da Sorbonne.
     
    No auge do sucesso da livraria, ele começou a me criar problemas, principalmente quando oficializei minha participação na reconstrução, no exílio, do então PTB de Leonel Brizola. Esta é a primeira vez que conto isso. O Arraes tinha o Brizola como grande adversário, um concorrente a sua liderança na esquerda. Desfizemos a sociedade e seis meses depois a livraria teve de ser vendida, porque ele não tinha ninguém preparado para administrá-la.
     
    Eu só não revelei essa história antes porque não queria ajudar a Direita, especialmente naquele momento difícil momento de transição política. Envolvendo pessoas conhecidas, o fato seria inevitavelmente explorado do ponto vista político. Foi uma pena, porque era considerada a melhor livraria estrangeira de Paris. Funcionava como uma espécie de embaixada dos exilados brasileiros e latino-americanos.
     
    Quando voltou, decidiu fundar o PDT juntamente com Brizola?
    Inicialmente, fundamos o PTB num grande congresso em Lisboa (1979). Quando a legenda foi entregue a Ivete Vargas, por obra do general Golbery, criamos o PDT, que dirigi por 16 anos em Minas Gerais. Nesse período, fui diretor do Pasquim, da Revista Cadernos do 3º Mundo e, mudando de rumo, diretor e vice-presidente do BANERJ, nos dois governos de Brizola.
     
    Como você vê a imprensa hoje?
    Na parte técnica evoluiu muito, mas não se pode dizer o mesmo da parte política. Veja agora no caso da negociação do Lula com o Irã. Devia ter dado mais destaque, mas preferiu duvidar do acordo, quase que apoiando a posição ressentida e derrotista dos EUA. Outra coisa é a preocupação de desmoralizar os líderes populares da América Latina, demonizando-os perante a opinião pública, como fazem com Hugo Chávez e Evo Morales, entre outros. Só não batem mais no Lula devido ao apoio popular que tem.
     
    O que você está fazendo agora?
    Trabalho na elaboração de dois livros, que estão me exigindo um esforço enorme de pesquisa. Um, quase pronto, sobre a história de Belo Horizonte, e outro, um pouco mais atrasado, sobre a história de Minas. E tenho também o projeto de outro livro, meio auto-biográfico, que estou chamando de O Jornalismo na Contracorrente.
     
    Como você avalia o governo Lula?
    Aprovo em 80%, principalmente na política internacional e de redistribuição de renda. A Dilma, que conheço de sua passagem pelo PDT, poderá fazer avançar o governo, nesses e em outros campos.
     
    O socialismo fracassou?
    Fracassou o tipo de socialismo estatal, totalitário, que se esclerosou, e que nunca me seduzira, como membro do antigo PSB, Partido Socialista Brasileiro. Quais são as sociedades mais avançadas do mundo? São as da Europa, influenciadas pelo pensamento socialista e social-democrata, principalmente na Escandinávia. O que fracassou realmente foi o capitalismo; basta ver que quase acabou com a economia mundial, quando se julgava no auge de seu poderio. Enquanto houver injustiça social, o socialismo será uma esperança para a Humanidade.
     
    Você tem alguma utopia?
    A luta dos povos é travada a cada momento. Apesar das derrotas e recuos, vamos avançando, num processo irrefreável. A situação hoje registra essa evolução, como na área dos direitos humanos, dos progressos da ciência, a começar pelas conquistas da medicina; do domínio das novas energias, da defesa do meio ambiente, dos direitos das minorias e da posição da mulher na sociedade. Veja o caso da América Latina e compare-o com a de anos atrás.
     
    A simples eleição de um ex-retirante para presidente da República no Brasil constituiu um fato histórico. Mesmo nos EUA, os avanços são inegáveis, com a vitória de um negro para governar o País. Ao lado disso, temos o agravamento do quadro social em regiões inteiras, como na África, mergulhada no atraso e na miséria, e até nos países desenvolvidos, com suas economias ameaçadas de implodir. Parece que estamos chegando ao fim de uma era. O capitalismo já mostrou não ser capaz de resolver os problemas mundiais, os de hoje e mais ainda os que estão pela frente.
     
    Talvez peque por excesso de otimismo, mas diviso ao longe os sinais de uma nova sociedade, socialista e democrática, até mesmo como uma questão de sobrevivência dos mais altos valores da Humanidade. A crise atual pode ser a parteira dessa nova sociedade.
     
    Junho 2010, entrevista concedida a Ricardo Rabelo, editor do Bafafá


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