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  • Tom Zé: Virei artista quando descobri que era péssimo cantor

    Agenda Bafafá em 31 de Maio de 2016    Informar erro
    Tom Zé: Virei artista quando descobri que era péssimo cantor

    Antônio José Santana Martins, conhecido artisticamente como Tom Zé, nasceu em Irará na Bahia. Seu interesse pela música começou ainda adolescente e nunca mais parou. Um dos precursores da Tropicália, ao lado de Caetano e Gil, é um artista polêmico, com opiniões marcadas por frases existenciais.  

    Aos 77 anos, acaba de gravar seu 25º disco “Tropicália Lixo Lógico”, com jovens artistas. “Eu encontrei vazios no meu esôfago, fígado, estômago e botei eles para ajudarem na fabricação dos elementos que vão influenciar meu cérebro”, revela. Sobre o tropicalismo, garante: “Quando houve essa agitação cultural, ela serviu de gatilho e liberou aquela visão de mundo que vem da oralidade, que não obedecia à lógica aristotélica, cartesiana”. O músico faz ainda uma revelação inusitada. “Descobri desde cedo que era um péssimo cantor, um péssimo violonista e um péssimo compositor".

    Como você começou a se interessar pela música?
    Eu não tinha nada para fazer música, não tinha em casa ninguém que fosse amante disso. Mas tínhamos a banda da cidade em Irará, no interior da Bahia. E eu me lembro que, quando eu estava com sete anos de idade, na festa da padroeira, eles resolveram fazer uma matinata. A banda foi para a rua de manhã só com os instrumentos de canto, sem muita percussão, e tocou uma coisa bem delicada, caminhando pela rua. De forma que eu acordei e parecia que estava num sonho. Aqui em São Paulo ninguém pode imaginar o que seja isso, mas lá em Irará não tem nenhum motor, nem dentro de casa nem fora de casa, então o silêncio é outro. Uma coisa tocada baixinha de manhã é um grande som, entende? No dia que eu acordei com isso fiquei muito impressionado, não com a música propriamente ainda, mas com a possibilidade de ter essa emoção no mundo.

    De quais músicas você gostava naquela época?
    A Rádio Nacional tinha uma programação que era uma coisa inacreditável. E, naquele tempo, as coisas que chegavam lá do mundo civilizado e que tinham a ver com a gente eram Luiz Gonzaga e Adoniran Barbosa, tocando principalmente "Saudosa Maloca". Foram as primeiras coisas que eu me lembro de terem me impressionado profundamente.

    Como se tornou músico?
    Em 1954, quando eu tinha 17 anos, eu pedi para me comprarem um violão em Feira de Santana. Nessa época, eu tinha uma namorada e ela me chamou para tocar. E aí eu levei o violão, cheguei, e passei a tarde toda sem cantar, não conseguia. Travou. Ela ficou quieta, calada. E eu pensei: "Agora eu não vou mais fazer música. Nunca mais vou fazer música". E realmente, eu nunca mais fiz música.

    Como assim? 
    O universo musical daquela época estava delimitado por um certo procedimento no qual eu nunca entrei. Eu sempre fui mais para o limite entre o ruído e o som do que para a permanência no som. Por curiosidade, interesse, e também por saber que eu era um fracasso com música. Eu só me tornei artista porque descobri logo que eu era um péssimo cantor, um péssimo violonista e um péssimo compositor. Foi isso que me fez virar músico. Se eu não tivesse visto isso, eu nunca me tornaria artista. E aí eu resolvi fazer música sobre o que estava na minha frente. Então, por exemplo, se o prefeito não calçava a rua, eu fazia uma música com queixas ao prefeito, é claro que brincando também, porque em Irará não se pode virar inimigo do prefeito! É claro que de vez em quando alguém me dizia: "Isso não é música!" Porque realmente não era música.

    Era o quê?    
    Era alguma coisa feita com música perto! Mas música, não. Mesmo quando era só voz e violão. Porque música naquele tempo era uma coisa que tratava de coisas distantes, com o verbo no pretérito. E uma música com o verbo no presente era uma coisa absolutamente nova.

    Você ficou conhecido na música brasileira por sua participação no movimento tropicalista dos anos 1960 e 1970, com Caetano e Gil. Como define o tropicalismo?
    É o resultado de Caetano e Gil, que são dois gênios e que por acaso estavam presentes nos anos de 1960 quando São Paulo queria mudar a fisionomia da arte brasileira. Havia um tipo de música no Brasil, aquilo que eu falei de uma música falando de um pretérito, falando de lugares não conhecidos, de amores super românticos, que era uma coisa que o movimento romântico passou para a melodia. Então, em 1962, quando nós nos conhecemos, o Caetano disse uma coisa assim: "Agora minha música está deixando de ser uma nostalgia de tempos e lugares." E eu já lhe contei que eu já estava fazendo uma música em que eu não queria isso.

    Você já estava nessa antes, então?   
    Sim, nós todos fizemos antes de chegar aqui. Chegou aqui quando Gil e Caetano, em 1964 e 1965, estavam vendo essa agitação cultural e participando dela. Minha tese é a seguinte: no cérebro deles estava guardado o lixo lógico do tempo não-aristotélico que educou a nós todos. Quando houve essa agitação cultural, ela serviu de gatilho e liberou aquela visão de mundo que estava guardada com eles, uma visão de mundo que vem da oralidade, que não obedecia à lógica aristotélica, cartesiana. Eles estavam, então, armados com duas visões de mundo, duas concepções de universo. Algo que nenhum dos outros intelectuais, muito melhor formados, tinham. Porque nenhum deles tinha passado por essa experiência do Recôncavo da Bahia.

    Na época, as músicas de vocês foram muito criticadas. De onde você acha que vem essa resistência ao que é novo?
    É importante assustar quem vem atrás. Quem veio até ali precisa tomar um susto para poder não gostar. Isso é uma estratégia que parece ser parte da história. O tropicalismo é muito mais marcado pelo que teve contra ele do que pelo que teve a favor. O que estava contra dá muito mais a ideia da força que ele tinha. Todo mundo esqueceu, mas teve a passeata contra a guitarra, teve abaixo-assinado contra programa tropicalista na TV, teve vaia contra o Caetano. Disseram que aquilo não era brasileiro, não era música, foi uma cisão. As pessoas têm o costume de dizer "até aqui eu vou". Depois daquele limite, a pessoa não quer mais saber, diz que já virou música ruim.

    Mas isso não parece acontecer com você. 
    Eu sempre tive curiosidade. Por exemplo, há um tempo o secretário da Cultura da Paraíba, o Chico Cesar, disse assim: dinheiro público não vai pagar "forró matéria plástica". Quando eu soube disso perguntei: o que é isso, forró matéria plástica? Fui ver e achei coisas que me deram muita inspiração. E aí era o caso de dizer assim: Chico, tudo o que aparece é o povo que faz. A gente tem que ouvir para aprender, senão a gente para no tempo. Esse forró universitário tem coisas que eu admiro profundamente, tenho inveja.

    Isso também acontece muito com o funk hoje. O que acha do funk que surgiu no Rio de Janeiro?
    Graças a Deus, o Brasil é o lugar onde fermentam essas coisas. Aqui você descansa e de repente descobre que no Pará tem um tipo de música completamente diferente. Para mim, uma novidade é uma maravilha. Não tenho preconceito. Seja lá onde for, ela nasce porque uma população inteira vai ali colaborar com miligramas de seiva cerebral para a coisa se constituir numa ameba, ameba essa que se desenvolve até se transformar num estilo. O que pode orgulhar mais uma nação do que brotar coisa nova em todo lugar, de todo jeito?

    Por que acha que isso acontece no Brasil?
    Para mim, uma das coisas mais importantes é que esse país que foi fundado com educação não-aristotélica. Porque o mundo todo vive em condição de escravidão a Aristóteles. Eu sei que as índias brasileiras nos ensinaram a ser asseados, a tomar banho. As índias gostavam de se lavar. Eu não sei, talvez a mesma coisa que lavou o corpo da índia seja aquela que toda hora lava a cabeça da gente e faça com que possamos admitir coisa nova. É essa metáfora que eu estou querendo trazer. Eu devia ter sido professor, não devia ter sido músico, para poder falar essas coisas de um jeito que uma ou outra pessoa entendesse, do jeito que eu falo ninguém entende!

    Nos seus últimos discos você tem gravado com muitos músicos jovens. O que te atrai nessa nova geração?
    Toda geração tem seus representantes no canto, na composição, no teatro, na filosofia. E quando eles aparecem, eu fico interessado em saber quais são as coisas que eles estão escolhendo fazer. E eu passo a ver se posso praticar aquilo também. Eu não posso mais ter 15 anos, mas alguma coisa talvez eu ainda possa lucrar, possa aprender. Como se diz, a aproximação é interesseira!

    A música brasileira produzida nos anos 60 e 70 tinha uma ressonância política muito forte. Você vê essa mesma dimensão na música produzida hoje?
    Tem um livro que diz que cada geração que está no poder vai ficar ali uns 15 anos. Uma hora a prática que essa geração repete vai começar a ficar cancerosa e os novos que estão surgindo por baixo vão chegar com uma modificação, que vai tornar a prática ainda útil para a sociedade. E então os mais velhos cairão. Se a classe que está no poder quer manter esses estudantes no subsolo, ela está matando uma geração. E é claro que a geração nova arranja uma forma de furar essa resistência, e surge como uma fonte d'água  que explode pela terra. E o que é isso? Isso é política, inclusive na música.

    Quais artistas você destacaria?
    Vou começar por artistas que já são sucesso: Emicida, Criolo. E os rapazes que estão trabalhando comigo, que estão mais verdes, O Terno, Trupe Chá de Boldo, a Filarmônica de Passárgada, o Kiko Dinucci, que está inaugurando um tipo de arranjo para o samba. A qualquer momento, a resistência dos que estão por cima vai ser furada e algum desses vai aparecer. O Tim Bernardes, da banda O Terno, é um negócio, você dá uma música para ele cantar e já vem com uma estética, uma política toda, ele tem guela, tem força! A política também vem nisso muitas vezes.

    No que está trabalhando agora?
    Estou terminando um disco com esses rapazes, que é resultado da presença deles me influenciando, tanto que acabaram mudando letras que eu tinha, entraram dentro de mim e falaram pela minha boca. Eu encontrei vazios no meu esôfago, fígado, estômago e botei eles para ajudarem na fabricação dos elementos que vão influenciar meu cérebro.

    Por Mariana Desidério
    Entrevista concedida ao Jornal Brasil de Fato e gentilmente cedida ao Bafafá. Setembro 2014
    Foto: Divulgação



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