Desde o início de 2012, a Anistia Internacional, entidade que atua em mais de 70 países, abriu um escritório no Brasil para tratar da luta dos direitos humanos. Para o cargo de diretor designou o historiador e cientista político Atila Roque, figura respeitada no movimento social. Ex-pesquisador e coordenador do IBASE, foi ainda diretor da Associação Brasileira de ONGs, um dos fundadores do Fórum Social Mundial, diretor executivo da ActionAid USA e do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos.
Em entrevista exclusiva ao Bafafá, Atila fala sobre diferentes temas polêmicos. Ele defende que os crimes cometidos durante a Ditadura sejam punidos e elogia a Comissão da Verdade. “É muito positiva a instalação desta comissão e nós temos acompanhado com muito otimismo”, assinala. Sobre a tortura, não titubeia: “A tortura nunca deixou de existir no Brasil. Infelizmente, ela é uma marca, uma mancha profunda na formação do Estado brasileiro”.
Questionado se tem uma utopia é enfático: “A minha utopia é que o Brasil se realize como projeto democrático. Que todos possam escolher quem amar, onde trabalhar, a sua opinião e religião”.
O que acha do reconhecimento dos direitos dos perseguidos pela Ditadura?
Isso é fundamental. O Estado brasileiro tem uma enorme responsabilidade pela supressão e violação dos direitos humanos durante a Ditadura. O importante hoje é que o Estado reconhece isso, mesmo chegando atrasado em relação a outros países. Quanto às reparações, a Anistia Internacional não tem uma posição específica, isso é uma questão que cabe a cada país decidir. O que nós somos claramente a favor é que o Estado reconheça que violou os direitos. Quanto à forma como é feita essa reparação não cabe a nós dizer como isso deve acontecer.
Como avalia os primeiros passos da Comissão da Verdade?
É muito positiva a instalação desta comissão e nós temos acompanhado com muito otimismo. Ninguém discute a qualidade de seus integrantes. Só o fato dela ter começado as audiências em diferentes esferas, ouvindo vítimas e pessoas, já criou um outro ambiente no país em relação a essa discussão. Além disso, ela suscitou a duplicação de outras comissões em diferentes circunstâncias. Universidades instalaram comissões, governos estaduais. Em menos de um ano verificamos que a agenda da comissão ganhou outra dimensão. Isso é louvável e essencial. A Anistia Internacional está bastante feliz com o trabalho da comissão e está disposta a apoiá-la no que tiver a seu alcance. Mesmo que ela trabalhe com limites legais em relação à Lei da Anistia que hoje limita a penalização dos agentes da repressão.
É favorável à punição dos agentes da repressão como na Argentina, Chile e Uruguai?
A impunidade é o pior caminho. Crimes graves como os cometidos durante a Ditadura como tortura, desaparecimentos e assassinatos, não prescrevem. O Brasil é signatário de tratados internacionais que nos obrigam a punir agentes do Estado que exerceram essas funções. Nós achamos sim que deve haver algum grau de responsabilização penal das pessoas que atuaram em nome do Estado. O que não podemos aceitar é o pressuposto do perdão, da não responsabilização.
A Lei da Anistia no Brasil deve ser revista?
Nós achamos que sim. Ela foi promulgada num contexto bastante diferente de hoje, ainda sob a Ditadura. Se agarrar a ela como pretexto para não punir os agentes do Estado que cometeram crimes não faz sentido. Existem crimes que são imprescritíveis. Sem dúvida nenhuma, achamos que a Lei de Anistia tem de ser revista sim.
Como os outros países veem a questão dos direitos humanos no Brasil?
O Brasil fez a transição de uma ditadura para uma democracia pujante e conseguiu avanços importantes na luta contra a pobreza. Existe uma enorme expectativa sobre o que o Brasil pode dar de exemplo para o mundo, num momento que ele vive uma enorme crise de paradigmas. É muito importante para nós cidadãos estar ciente de que o Brasil hoje precisa liderar a construção de um modelo de desenvolvimento que produza igualdade, justiça e respeito aos direitos humanos. E não o contrário. Esta é a equação que precisamos resolver: desenvolvimento, democracia e direitos humanos a partir de um outro modelo. Existe uma enorme atenção ao papel que o Brasil tem hoje no mundo em diferentes esferas de governança global, pelo modelo, o exemplo que pode trazer para o mundo de como resolver o dilema do desenvolvimento e da democracia sem violação de direitos.
Ainda existe tortura no Brasil?
A tortura nunca deixou de existir no Brasil. Infelizmente, ela é uma marca, uma mancha profunda na formação do Estado brasileiro. Ela existiu durante a Colônia, a República e se agravou durante a Ditadura. Ela permanece hoje nas prisões brasileiras, onde o Estado é responsável por manter a integridade dos presos. A tortura continua sendo um instrumento de controle por parte dos agentes do Estado. É preciso romper com esta cultura, pois é crime hediondo, uma violação do direito internacional. A legislação brasileira tem instrumentos bastante eficazes para combater a tortura, que apenas precisam ser aplicados. Existe um desafio na esfera das instituições e da sociedade que ainda demonstram um patamar muito alto de tolerância, como se fosse uma coisa natural. Admitir isso como prática ofende a todos. A tortura vem sendo praticada em nosso nome. Nós, como cidadãos, não podemos aceitar que barbaridades sejam cometidas em nosso nome.
O que achou da declaração do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, de que as cadeias brasileiras são medievais?
Nossas prisões são sucursais do inferno. A fala do ministro Cardozo é apenas a constatação de uma realidade reconhecida pelo Estado, já que ele é a autoridade na área. Ela precisa vir acompanhada também de ações. Concordo 100%, mas agora estou esperando a próxima fala dele para dizer o que o Estado fez ou fará para resolver isso.
Qual é o balanço que a Anistia Internacional faz das arbitrariedades em nosso país?
Uma coisa que a gente tem percebido como uma constante é quanto o tema do desenvolvimento no Brasil permanece atrelado ao uso da violência como instrumento de controle social. É como estar numa circunstância em que a modernidade convive de forma amigável com a brutalidade. Essa contradição se apresenta em quase todas as esferas em que atuamos. Nós vemos isso nos grandes projetos de desenvolvimento que impactam a vida de comunidades indígenas e camponesas e no modo como o sistema de segurança funciona. O grande desafio, em longo prazo, é desenvolver sem violar direitos, promovendo a igualdade da justiça. O que não pode é haver persistência da violência nos processos de desenvolvimento no Brasil.
Como está vendo o governo Dilma?
O governo Dilma, assim como foi o governo Lula, está enfrentando esses desafios de levar o Estado brasileiro para outro patamar. Nós percebemos alguns avanços, mas ainda acho que o governo Dilma tem sido excessivamente tímido na implementação de iniciativas contra a violação de direitos no Brasil. Entre elas, nas ações no combate à tortura. Existe uma série de mecanismos que ainda continuam lentos. Outra discussão importante é a temática de desenvolvimento e direitos. A gente sabe que esse é um tema sensível no governo. Nós vimos isso na ocasião da discussão da usina Belo Monte e suas consequências junto aos povos indígenas. A negação do governo em admitir essas divergências ainda é muito forte. Isso revela o quanto o mito do desenvolvimento muitas vezes justifica muitas coisas. O governo Dilma tem suas contradições, nós esperamos que ao longo dos próximos anos sejam abertos canais de discussão destes temas. Sabemos que nada é de solução fácil, mas é importante que tenhamos coragem de abrir essas caixas de pandora e enfrentar o mal de frente.
O que acha da política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro?
Elas não são a solução mágica para resolver todos os problemas de segurança pública. No entanto, significaram um avanço no esforço de rever o modo tradicional de ação da polícia, que é da guerra e de confronto. A UPP tem procurado levar a ação policial a incorporar outra dimensão na sua ação, sendo mais cuidadosa na sua relação com as comunidades onde atua. É preciso sublinhar que a segurança pública é um direito de todas as pessoas, não importa onde vivam. A ação da UPP procura quebrar esse padrão a partir de um modo de intervenção que não seja do confronto. É importante como mudança de paradigmas na segurança pública.
E a atuação das milícias?
As milícias são o lado mais perverso da corrupção policial. Elas combinam a corrupção do Estado com a violência bruta. A milícia hoje é a chaga mais perigosa dentro do crime no Brasil. Ela tem o potencial de corromper o Estado como um todo e incorporar na sua dinâmica uma parte importante do mundo privado. A milícia requer um tratamento de grande atenção da justiça e das forças de segurança.
Quais são suas prioridades frente à Anistia Internacional?
Talvez a principal prioridade seja enfrentar o desafio de incorporar no repertório da sociedade, um respeito grande pelos direitos humanos. É preciso reconhecer que, como sociedade, a gente não pode aceitar violações de direitos como ainda vemos. O maior desafio da Anistia Internacional é conseguir mobilizar a cidadania brasileira para essa questão. A gente espera fazer isso em parceria com organizações brasileiras, na luta pela construção de uma cultura de direitos.
Tem alguma utopia?
A minha utopia é que o Brasil se realize como projeto democrático. Igualdade na diversidade, onde todos possam buscar a felicidade. Que todos possam escolher quem amar, onde trabalhar, a sua opinião e religião. De vida plena, onde todos tenham direito a uma vida de dignidade e de expressão de sua forma de estar no mundo. Quero muito viver num mundo, num país, em que isso não seja mais problema. Minha utopia é que não haja limites para a expressão da riqueza, da beleza que o ser humano tem.
Dezembro 2012, entrevista concedida ao editor do Bafafá Ricardo Rabelo.