O carioca Augusto Boal é um dos mais importantes diretores de teatro da atualidade e seu trabalho ganhou o respeito internacional. Torcedor do Fluminense, nascido e criado no bairro da Penha, desde os nove anos de idade já dirigia peças para os familiares em casa em companhia dos três irmãos. Só conheceu Copacabana aos 18 anos quando foi estudar química na Universidade do Brasil na Urca, atual UFRJ. Filho do padeiro português José Augusto Boal e da dona de casa Albertina Pinto, é casado há 35 anos com a psicanalista argentina Cecília Boal e é pai de dois filhos. Estudou na School of Dramatic Arts da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, onde foi aluno do dramaturgo John Gassner. Sua maior obra é o Teatro do Oprimido, que transforma o espectador em elemento ativo, protagonista do espetáculo. Em 1971, partiu para o exílio e seu retorno definitivo ao Brasil só ocorreria em 1986.
Como foi ser criado na Penha?
Morar num bairro naquela época era como morar numa cidadezinha pequena. Tudo era ali mesmo. Quando eu era pequeno eu estudava numa escola chamada Santa Tereza, em Olaria, para onde eu ia a pé em 20 minutos. Cinema tinha o da Penha, tinha a quermesse da igreja da Penha, que durava um mês. A Penha era um bairro centrado em si mesmo. Jogávamos bola no meio da rua e quando íamos marcar um gol pedíamos para os carros esperarem.
Como e onde você começou sua carreira de diretor de teatro?
Antes mesmo de viajar para os Estados Unidos eu era amigo do Abdias Nascimento, que é o meu mais antigo amigo. Ele diretor do teatro experimental do negro, que tinha nomes como Grande Othelo. Nessa época, eles começaram a me incentivar a escrever, tendo a ver com o negro. Eu voltei dos EUA para São Paulo para ser diretor do teatro de Arena: me ofereceram um teatro e um elenco. Minha aproximação com o Arena foi através do crítico de teatro Sábato Magaldi, que já conhecia o meu trabalho. Aliás, eu já era um pouco conhecido, porque mandava crônicas para um jornal de São Paulo chamado Correio Paulistano. Então eu entrevistava gente de teatro de Nova York, escrevia crônicas e mandava pra eles. Por isso já me conheciam pelo que eu escrevia, não como diretor. Eu não era diretor, mas eles precisavam de um diretor e o Sábato disse: olha o Boal tá vindo dos Estados Unidos e eu tinha trabalhado com gente super bacana lá. O meu professor de dramaturgia era o John Gassner, que era o professor do Tenesse Williams, do Arthur Miller, toda essa gente. Então ele falava: alguma coisa ele deve ter aprendido com gente boa assim ensinando. O José Renato Pécora, diretor do Arena, se entusiasmou e disse para eu vir. Depois que eu dirigi a primeira peça, ele me convidou pra ficar como co-diretor. Quando o José Renato veio morar no Rio, me deixou como diretor artístico do teatro.
Como foi a trajetória do Grupo Arena durante a ditadura?
Eu fiz parte do Arena até 1971, quando fui preso e banido. O Arena foi seguindo etapas. A primeira etapa era de peças realistas estrangeiras, mas como a gente tinha um laboratório de interpretação, a gente pesquisava uma forma brasileira de interpretar, mais próxima da forma de falar do povo. Nós queríamos mais operários brasileiros em cena, um teatro totalmente voltado pro social. Depois nós fizemos um período de três ou quatro anos só com as primeiras peças de autores novos, para “forçar” o aparecimento de dramaturgos brasileiros. Foi assim que surgiu Guarnieri, Vianinha, Roberto Freire (o da psicossomática), Lauro César Muniz, Benedito Ruy Barbosa, Flávio Migliaccio, eu próprio. Se não me engano, foram doze autores que lançaram suas peças através do Arena. A última fase foi um trabalho muito bom, que foi o teatro jornal: eram técnicas de traduzir as notícias de jornal em cenas teatrais. O teatro jornal foi o começo do teatro do oprimido. Isso foi em 71.
Como foi a produção no exílio?
Eu fui primeiro para a Argentina e foi lá que eu comecei a experiência com o teatro invisível. Na época, havia uma lei argentina que dizia que todo argentino tem o direito de comer. Então se não tinha comida, podia entrar num restaurante e pedir o que fosse e não pagar, só assinar. A gente tinha preparado fazer a cena na rua mas como havia o risco de que as pessoas fossem presas, inclusive eu, que poderia ser deportado para o Brasil ou até ser morto, alguém teve a idéia da gente ir para um restaurante. Então você ficava lá no canto comendo e assistia a estréia. Ninguém sabia que era teatro. Depois fiz trabalhos na Venezuela, na Colômbia, no México, no Equador, este último com populações indígenas. Ali comecei a desenvolver técnicas de Teatro Imagem. Consistia em comunicação não verbal através de imagens, objetos, as pessoas, as posições do corpo.
No Peru, em 1973, eu trabalhei num programa de alfabetização integral e foi quando comecei a fazer o Teatro Fórum. O espectador entrava na cena e mostrava o que ele pensava como solução de um problema apresentado. Tinha que entrar em cena, substituir o protagonista e mostrar alternativas diferentes para a peça. Na Europa, eu e minha mulher Cecília, que é psicanalista, começamos a trabalhar com técnicas interiorizadas, próprias para teatralizar coisas subjetivas que a gente chama de arco íris do desejo.
Por que você não produz para a televisão?
Porque eles não têm o menor interesse em fazer uma coisa como o teatro do oprimido, que é uma coisa democrática. A televisão inclusive faz uma coisa que é mal chupada do teatro fórum que é um programa chamado “Você decide”, mas é um pastiche, porque você tem que escolher entre isto ou aquilo e eles já têm filmadas as duas versões. É uma coisa autoritária, ruim. No teatro fórum, não: o espectador entra e inventa soluções, respostas... Eu sempre digo que se o Roberto Marinho quiser me convidar, por coincidência, eu tenho o horário nobre disponível. Eu posso ir pra lá pra fazer teatro fórum. É uma coincidência extraordinária: de 19 às 22 horas, eu estou livre.
Como é que você está vendo a televisão no Brasil?
A televisão, a mídia em geral, foi inventada não para informar. Ela foi inventada para formar uma opinião. E a opinião inevitavelmente é daqueles que possuem os meios de comunicação. Há vários canais de televisão, mas essas pessoas todas pertencem à mesma classe social, têm os mesmos interesses. A censura existe porque são sempre os mesmos que escolhem e a vulgaridade está campeando solta. Ao mesmo tempo estupidifica o espectador, dizendo que é isso que a platéia quer. Com que autoridade eles definem o que as platéias querem? Há programas melhores que também têm uma audiência grande. No entanto, fazem programas imbecis e com isso, submetem o espectador a um determinado conteúdo. É o que eu chamo de prótese do desejo: eles arrancam no espectador o desejo que ele pode ter e implantam uma prótese. O espectador passa a desejar tomar coca-cola que, sabidamente faz mal à saúde, e não um suco de beterraba, porque é isso o que ele vê na televisão.
O que acontece com o teatro, então, atualmente dentro deste quadro?
A produção teatral foi privatizada. Antes era o governo que, através de comissões, discutia programas pro ano inteiro. Agora é preciso ir às empresas: nós apresentamos o projeto da Traviata a cinqüenta empresas. Todas elogiaram o projeto e algumas mostravam que tinham entendido bem a proposta, mas diziam: isso não serve pro nosso produto. O responsável por uma empresa que eu não vou revelar o nome disse: “Você não pode esperar que a minha empresa que produz alimentos vá patrocinar a história de uma prostituta que morre tuberculosa numa noite de carnaval. Isso não vende o nosso produto.” E eu respondi: “Você tem toda a razão. Isso pode vender penicilina, mas produtos comestíveis, não.”
E a esquerda, leva a presidência?
A população brasileira está tão desencantada com tantas falsas promessas, que pela pedagogia do dia-a-dia, a pedagogia do sofrimento, já sabe que esses governos entregaram o Brasil, principalmente este que está ai. Não temos nenhuma outra saída sensata além de votar no Lula. O que tem de positivo nele é que além de ser bom, está cercado de muita gente boa.
Novembro 2001. Entrevista concedida a Ricardo Rabelo, editor da Agenda Bafafá, ex-Bafafá Online