Euzébia da Silva, conhecida como Dona Zica e viúva do grande compositor Cartola, teve uma trajetória de vida marcada pela dificuldade. Nascida no domingo de carnaval de 1913, era filha do ferroviário Euzébio da Silva e da lavadeira Gertrudes Efigênia dos Santos. Desde cedo, ganhou o apelido de Zica. Aos quatro anos de idade foi morar no Morro da Mangueira com a mãe e os quatro irmãos mais velhos. Poucos anos depois já trabalhava como empregada doméstica e só retornava para casa no fim de semana.
Durante um longo período foi também lavadeira, cozinheira e tecelã. Aos 19 anos, casou-se com o fundidor Carlos Dias do Nascimento, com quem teve cinco filhos, sendo que três morreram ainda crianças. Dona Zica só foi casar com Cartola aos 40 anos quando ambos já eram viúvos. Começava ali uma convivência de mais de duas décadas.
Como você conheceu o Cartola?
A gente foi criado juntos e nunca pensou nesse negócio de namoro. Cartola foi casado 22 anos com a Deolinda, que largou o marido para ficar com ele, apesar de ser dez anos mais velha. Eu por minha vez me casei aos 19 anos, ficando viúva 19 anos depois. Quando Cartola ficou viúvo foi morar na roça e ficou por lá uma porção de anos. Depois de 12 anos, ele resolveu aparecer na Mangueira procurando o Carlos Cachaça, que era meu cunhado. Ai ele chegou, “oi Zica, ce ta boa, pois é eu estou viúvo”, ai eu respondi que “eu também”. Foi quando ele até fez um samba: “o que é feito de você, oh minha mocidade, oh......”.
Foi quando eu disse pra ele que todos os sábados eu ia à Copacabana lavar umas roupas. No sábado seguinte lá estava ele me esperando no ponto do bonde. Eu perguntei o que ele estava fazendo ali e ele foi logo falando de novo que estava viúvo, etc. Eu falei direto: “Não quero nada com você, você é muito mulherengo e não quero brigar com ninguém”. Ele então argumentou: “Não, eu já tou com juízo, estou mais velho, tive doente”, contando a vida dele. No outro sábado lá estava ele de novo. Como eu também estava viúva, acabei aceitando o namoro. Mas disse para ele: “sua vida vai ter que mudar, você tem seu jeito de ser e eu tenho filhos...” Como ele gostava de beber eu fui colocando ele no lugar, dizendo que “aquilo não era mole, que ele era o Cartola”. Acabou que ficamos 23 anos casados. Foi muito bom, foi melhor do que o meu primeiro marido, ele foi muito bom para os meus filhos e meus netos. Graças a Deus vivemos todos esses anos bem.
Como era fazer carnaval antigamente?
Era mais pobre mas era mais gostoso. Era um sacrifício ao contrário desse luxo que é hoje. No começo o samba era cantado na véspera do desfile, ninguém ficava sabendo até poucos dias do carnaval. A batida do nosso samba era tão lenta que quando a gente chegava na praça Onze o público nos identificava pela batida de nosso chinelo.
Quantas vezes você desfilou pela Mangueira?
Desde que a escola foi fundada em 1928, quando saí de baiana, só não desfilei umas quatro vezes.
E como é a emoção de entrar na Avenida?
Até hoje, quando chego na Avenida fico emocionada quando é anunciada a Mangueira. Dá aquele frio, medo de errar, medo de não cantar.
Você tem um sonho?
De estar sempre na Mangueira, enquanto viver, enquanto Deus me der vida. É a escola que eu amo, é o lugar que moro e que eu adoro. Às vezes, alguns jornalistas perguntam se eu gostaria de morar na Vieira Souto. Eu respondo dizendo que “minha Vieira Souto é aqui, daqui só saio pro Caju”. Graças a Deus eu tenho uma resistência forte. Quando for a hora, eu vou.
Em relação ao Brasil, como você está vendo o nosso país?
Eu tou vendo triste, né? Nosso país não tem dirigentes. Agora para piorar nós estamos tendo um castigo, não sei se é por bem ou se é por mal (as enchentes), o que Deus está achando. Tenho pena daqueles que sofrem. Eu não acredito em mais ninguém. Todos os que entram dizem que vão fazer e acontecer e acabam não fazendo nada. Mas nós temos que votar. Não sei o que a Roseana vai fazer, o Lula vai fazer!
O Cartola fez “As rosas não falam” em resposta a uma pergunta sua, é isso?
Nós tínhamos uma roseira, já que ele ganhou uma muda e plantou no terreno lá de casa. Ela cresceu e dava muitas rosas. Todo os dias de manhã ele ia lá e limpava a roseira. Ai um dia eu falei pra ele: “Você plantou essa roseira de boa vontade porque ela não pára de dar rosa, é isso?”. Ele respondeu: “Sei lá, as rosas não falam”. Passados uns 15 dias, ele disse para não ser incomodado já que estava com uma idéia de letra na cabeça. Até que me chamou e pediu para eu ouvir.
E como a Beth Carvalho descobriu a música?
Ela ia muito lá em casa pedir sambas para serem gravados. Um dia ele cantarolou a letra para ela, que imediatamente disse que era dela e que iria gravá-la. Essa música deu muito dinheiro, até hoje. É até engraçado, de tantas músicas lindas que ele tem, essa foi o carro chefe. Todos os cantores gravaram, o último foi o Jamelão, com uma orquestração muito bonita.
O samba é para sempre?
O samba nunca vai morrer, ele é a vida, é o que nos ilumina.
Entrevista concedida a Ricardo Rabelo.
Janeiro de 2002