O silêncio na simpática casa do multimídia Haroldo Costa é quebrado pela chegada do repórter. A saudação contagiante àquele que lhe faria a entrevista, no segundo andar da residência, em seu escritório, dá uma mostra do temperamento do escritor, pesquisador, jornalista e homem de TV Haroldo Costa, que, sempre alegre e às voltas com suas mil atividades, este ano de 2003 faz chegar às livrarias seu 7º livro, “Salgueiro – 50 anos de Glória”, pela Editora Record.
O livro traça um panorama da escola que Haroldo elegeu para torcer num dos muitos desfiles que vem acompanhando como profissional e amante do carnaval. Haroldo, aliás, tem laços profundos com o samba. Ou com o que representa o samba. Casou-se com a coreógrafa Mary Marinho, uma das irmãs Marinho, que durante anos abalaram o carnaval carioca. Por tabela, é cunhado do portelense Lan, casado com Olívia, outra das irmãs Marinho.
Mas o livro tem a marca de Haroldo, que se autointitula um biscateiro. Além de seu requinte popular, típico de alguém que entende do assunto (vide seus comentários todos os anos para a TV Globo), o livro ora lançado pela Record tem, em sua quarta capa, depoimentos e versos acalorados de salgueirenses famosos, como por exemplo: “Imaginar o Salgueiro / Lua sobre o sangue de linda mulher / É preciso o universo inteiro / Pra mostrar o que o Salgueiro é” (Aldir Blanc e Cláudio Jorge).
Foi, também, numa acalorada manhã do verão do Rio de Janeiro que Haroldo Costa concedeu a seguinte entrevista:
Como surgiu a ideia de escrever o livro?
É uma longa história e eu tenho que me posicionar como salgueirense nisso tudo. Pois eu adotei ou fui adotado pelo Salgueiro já alguns anos atrás e até fazia parte da comissão julgadora do carnaval. Até que no ano de 1963, há exatamente 40 anos, no ano do enredo sobre Xica da Silva, eu fiquei inteiramente apaixonado pelo Salgueiro, resolvi ser salgueirense e renunciei a qualquer comissão julgadora oficial, ficando apenas no Estandarte de Ouro, promovido pelo Jornal O Globo.
Tempos depois, eu escrevi o livro “Salgueiro – Academia de Samba”. Era um histórico do Salgueiro, não só da Escola de Samba, mas do morro, da comunidade, de como esse povo foi formado, de onde as pessoas vieram, qual a religião que tinham, que tipo de lazer praticavam, como se relacionavam entre si e que finalmente desembocava na Escola de Samba, que ficou sendo o grande estandarte do morro, como de resto aconteceu em outras comunidades.
Nilópolis, por exemplo, ficou conhecida internacionalmente por ser terra da Beija-Flor; o Morro da Mangueira também por ser berço da Estação Primeira de Mangueira. Então hoje a voz do morro do Salgueiro é a sua Escola de Samba. Neste sentido, o Morro do Salgueiro é muito especial, pois teve um grande número de blocos e três Escolas de Samba. E foi a partir da fusão dessas escolas que surgiu o Acadêmicos do Salgueiro.
Mas aquele livro tinha esse caráter de mostrar o que vai atrás das escolas de samba. Foi o que eu fiz mostrando os enredos, como foi, como não foi, tudo enfim.
Qual o período que abarca o primeiro livro? E este segundo?
O primeiro vai da fundação, em 1953, até 1984, ano que foi publicado. Passados alguns anos, veio a efeméride dos 50 anos do Salgueiro e eu pensei em dar continuidade ao livro. Mas, depois, achei melhor fazer algo diferente, com outro enfoque.
Ao invés de falar do lado sociológico do morro, sem nenhuma pretensão, eu resolvi partir para um outro caminho que seria fazer os 50 carnavais do Salgueiro, através dos seus sambas, das suas melodias, das histórias de cada ano, com uma radiografia da escola e suas colocações. Mas agora eu fiz de 1953 até o último desfile em 2002 e o livro vai até 2003 porque o samba de 2003 já está publicado.
A intenção é essa. Dar um panorama do Salgueiro, essa escola que teve uma importância muito grande por ter mudado a história do carnaval a partir dos anos 60. Pois os enredos até aquela época eram voltados para a história oficial do Brasil. Como a “Batalha do Tuiuti” e a “Inconfidência Mineira”. Ou seja, enredos que focalizavam a história do Brasil que os livros mostravam.
O Salgueiro começou a apresentar a história marginal do Brasil, aqueles heróis que não estavam nos livros, que não eram prestigiados, e isso se deu com o enredo “Zumbi dos Palmares”, de 1960. O Zumbi era um personagem pouco conhecido pelas pessoas. Os livros de história dedicavam apenas uma página, no máximo, para Zumbi. Era um episódio que passava despercebido.
O Salgueiro, então, teve essa sensibilidade de trazer à tona a saga do Zumbi, que passou a ser um personagem. Começou a se descobrir quem foi ele, o que pensou, o que fez, etc. A mesma coisa aconteceu com a Xica da Silva. Ninguém até então tinha ouvido falar dela. Quando o Salgueiro anunciou parecia que era uma ficção. E se descobriu essa maravilhosa personagem que depois virou tudo, filme e música.
Neste sentido é que você afirma que o carnaval é um dos principais veículos de difusão cultural?
É isso exatamente e eu vou chegar lá. Então nós tínhamos a Xica da Silva, o Debret e Dona Beja, que foi outra figura descoberta pelo Salgueiro. Em plena ditadura, a Escola fez o enredo chamado “História da Liberdade no Brasil”, baseado no livro do Viriato Correia, que era uma coisa meio audaciosa no período que vivíamos. A palavra liberdade já atiçava a censura dos poderosos do momento.
Então, o Salgueiro entrou por esse caminho, não só mudou o carnaval, adquirindo perfil próprio, como também influenciou outras escolas. Daí, a meu ver, a Escola de Samba passou a ter essa grande importância de difusão cultural e da história do Brasil através de seus enredos.
Até porque lamentavelmente nós somos um país que lê pouco. Os livros específicos nessa matéria não são muitos. Os que existem são acadêmicos. A Escola de Samba faz com que não só a massa tome conhecimento daquele enredo, mas também todo o mundo que vai assistir na avenida e todos os que assistem pela TV em todo o mundo.
O fato de escrever sobre o Salgueiro teve a ver com o fato de ela ser a sua agremiação?
Eu já fiz texto para várias escolas e poderia ter escrito sobre outras mais. Mas eu achava que era um débito pessoal meu, como torcedor da escola, de mostrar a história do Salgueiro, através dos meus contatos e das pessoas que eu considero lá dentro. Tudo isso aproveitando a minha vivência de estar há anos acompanhando a escola.
Eu mesmo desfilei alguns anos, a minha família, minha mulher, minhas cunhadas, as irmãs Marinho, que durante muito tempo foram atrações no Salgueiro, enfim, nós sempre estivemos próximos. Mas eu nunca aceitei, por conta das minhas várias atividades, ter algum cargo mesmo que honorífico na escola, apesar dos muitos convites que recebi.
Acho que o meu negócio é ficar do outro lado do balcão, fazendo as narrações e comentários pela TV Globo, livros, etc. Mas as escolas, em geral, me comovem muito. Até há alguns anos eu tinha medo de me cansar. Mas, milagrosamente, felizmente, não me cansei.
Cada ano para mim é motivo de uma emoção muito grande. Eu vou até os barracões, conheço os compositores, participo, até, algumas vezes da fase de escolha dos sambas-enredos. Eu vivo a vida interna das escolas, então eu sei o que é e o esforço que significa, além do amor e do sangue que as pessoas dão.
Agora existem outras pessoas que só vão lá para aparecer na mídia e ficam do lado direito da avenida, onde estão as câmeras.
Neste sentido, você acha que o carnaval é uma inclusão social ao contrário na medida em que quem faz a festa é o povo? Uma vez que cada vez mais modelos, atrizes e socialites participam da festa do Carnaval?
Na minha impressão é uma mudança que teria que acontecer. Foi sempre assim. Se você observar a história da música e da dança no Brasil verá que elas foram sempre coisas populares, até mesmo proibidas, como foi o maxixe, que foi excomungado. O lundu era uma música da senzala, que depois foi permitida a ir para o salão da nobreza.
Foi para Lisboa tocada pelo Caldas Barbosa, primeiro compositor brasileiro a fazer sucesso no exterior. Então há essa absorção pela elite das coisas que o povo faz. E na Escola de Samba não seria diferente.
Durante muito tempo o sambista foi visto como quase um marginal. E hoje o negócio mudou inteiramente. A Escola de Samba foi cooptando as pessoas que chegavam lá. Ela é uma das coisas mais democráticas que existem.
Ninguém te pergunta quando você quer desfilar numa ala se você é branco, preto, rico, pobre, católico, umbandista. Então como é democrático, você tem de tudo. As artistas que vão se promover, mas também as baianas, as porta-bandeiras, que estão lá porque têm competência para estar.
O cerne, a base da Escola de Samba, no entanto, continua firme. As mudanças são coisas que acontecem no decorrer do processo. As Escolas de Samba não são estáticas como eram no início dos anos 30. Você não pode querer que os compositores façam samba como faziam nos anos 50.
Hoje existe Internet, TV a cabo, etc, a informação está à disposição das pessoas. Você não pode querer que as pessoas não sejam atingidas pela informação. Seus trabalhos vão ser o resultado disso. Eu não participo dessa corrente saudosista. Antigamente era muito bom e hoje também é muito bom. Salvo os percalços e as mudanças que o tempo impõem.
Como foi a pesquisa para escrever o livro?
Como trabalho há anos no Carnaval, no Estandarte de Ouro, ou escrevendo artigos para a mídia, recorri ao meu próprio conhecimento, e me vali também da imprensa, além de depoimentos de pessoas da comunidade do Salgueiro, que estão lá desde a fundação da escola.
Então esse livro é um histórico da fundação da escola, como ela surgiu, a importância dela no conceito geral do carnaval, essa mudança estética que foi uma revolução no carnaval e fora disso a grande equipe que o Salgueiro criou e que hoje está espalhada por várias escolas.
A Rosa Magalhães, por exemplo, que hoje está na Imperatriz Leopoldinense, veio do Salgueiro, daquela fase do Arlindo Rodrigues e do Fernando Pamplona, que foram os mestres dessa geração toda. O Max Lopes, que está na Mangueira, o Renato Lage, que durante muito tempo foi da Mocidade e agora está no Salgueiro. A Maria Augusta que fez uma revolução na União da Ilha do Governador e depois esteve na Beija-Flor.
Enfim, essa geração toda que provém do Salgueiro.
Mais uma vez em seu novo livro, você deve ter histórias curiosas, pitorescas para o autor. Pode adiantar alguma delas?
No ano em que o Salgueiro fez o enredo “Mangueira, minha madrinha querida”, que foi o maior fiasco de todos os tempos. Nessa época o desfile ainda era na Avenida Presidente Vargas. O samba do Zuzuca era muito bom, mas tinha um perigo.
Quando ele voltava, depois do refrão, para a primeira parte, podia voltar em qualquer lugar que daria certo. Só que no desfile, que ainda não tinha sonorização, ele entrou em partes diferentes nas diversas alas. Tudo era feito por um carro de som da própria escola.
Mas naquela época o diretor de harmonia é que vinha trazendo o samba para não haver o “atravessamento”. Então esse foi um momento trágico do Salgueiro.
Você ressaltou o caráter democrático do samba. Como estamos com um governo novo, gostaria de saber o que você espera da política de Lula para a cultura de um modo geral?
O PT teve sempre uma preocupação muito grande com a cultura. Até mesmo através de artistas como Paulo Betti, Sérgio Mamberti, Antônio Grassi, Bete Mendes e tantos outros trabalhadores da cultura, como cenógrafos, produtores e durante muito tempo eles tiveram várias discussões para criar uma política cultural digna.
Agora com o PT no poder, essas possibilidades aumentam. É só aplicar aquilo que eles discutiram este tempo todo que vários setores da cultura serão contemplados. É preciso que não se tenha a cultura apenas como um artigo de luxo, de consumo. É preciso que ela seja um elemento de participação coletiva.
Por aí é que eu vejo que pode haver uma mudança no enfoque tão elitista da cultura do Brasil. Pela primeira vez nós temos a possibilidade de o Estado brasileiro ter uma visão diferente da cultura. No seu mais vasto significado, como um bem que pertence a todos nós.
Entrevista concedida a George Patiño