Quando participou do festival da Record em 1967, o sargento do exército Martinho José Ferreira nem esperava que o destino de sua vida ia mudar radicalmente. O sucesso veio a galope e entre o quartel e o público, o artista que ficaria conhecido como Martinho da Vila, optou pelo último. Estava começando ali a carreira de um dos maiores sambistas do país.
Filho de agricultores, Martinho nasceu em Duas Barras (interior do estado do Rio) dia 12 de fevereiro de 1938. Aos quatro anos veio para o Rio e foi morar no bairro Lins, onde foi criado junto com os dois irmãos.
Estudou o primário na Escola Municipal Rio Grande do Sul no Engenho de Dentro, para depois fazer um curso profissionalizante de Auxiliar de Química Industrial no Senai, seguido de um curso de Técnico em Contabilidade na Academia de Comércio Candido Mendes.
Em 1956, alistou-se no exército onde cursou a Escola de Instrução Especializada, tornando-se sargento-contador, função que abandonaria em 1969 para ser cantor profissional.
Ao longo de quase 35 anos de carreira lançou 29 LPs e CDs e vendeu 10 milhões de discos, sendo que o CD Tá delícia, tá gostoso, lançado em 1995, vendeu 1 milhão de cópias. Foi autor de antológicos enredos, entre eles Kizomba, Festa da Raça, que levou a Vila Isabel à vitória em 1988.
Em entrevista ao Bafafá, Martinho da Vila fala sobre vários temas: juventude, carreira, samba, desfiles e muito mais.
Você largou a caserna porque já antevia uma carreira artística?
Não. Minha carreira artística foi por acaso. Fiz sucesso no festival Record em 1967, de uma hora para a outra com a música Menina Moça. Isso apesar desta música não ter sido tocada nas rádios. Naquele ano já estava começando a pressão da censura nos festivais já que no ano anterior tinha havido a Disparada do Geraldo Vandré. Neste sentido, proibiram que fossem tocadas nas rádios as músicas Alegria, Alegria, do Caetano Veloso e a própria Menina Moça, que era tida por alguns como contra a instituição da família. Ela falava de divórcio, desquite, amigação, que na época eram palavrões. A direção da Record conseguiu que a música fosse liberada só para o festival mas não para regravações, só para o disco do festival. Mesmo assim, ela não ficou como deveria. Era um partido alto que ninguém estava acostumado a fazer e foi gravada de outra forma. No ano seguinte concorri com Casa de Bamba e, essa estourou. Graças a isso, fui convidado para gravar e acabei fazendo grande sucesso com ela. O Jair Rodrigues também gravou a música. Em 1968, o primeiro e o segundo lugar nas paradas em compacto simples eram com Casa de Bamba, na minha voz e na de Jair, alternadamente.
Sem os festivais, outros artistas não teriam surgido?
Os festivais tiveram um papel importante. Eles eram um grande veículo de divulgação, por conta da televisão, e que misturava as grandes estrelas com os novatos. O resultado é que revelou uma série de artistas que hoje são expoentes da música como Jorge Ben, Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo e outros. Hoje é impossível fazer um festival. Isso porque os editores musicais têm uma interferência muito grande, as gravadoras também, o empresário idem.
Para alguns, o gênero samba está esgotado. Como você vê essa afirmativa?
A música não tem fim. É impossível esgotar porque na música brasileira a base toda é samba, que tem uma vertente muito grande. Samba choro, samba canção, samba enredo, samba exaltação, bossa nova. Ele não tem como esgotar. Todos os grandes intérpretes de uma maneira geral cantam samba. Isso faz a permanência.
Você acha que ainda há um certo preconceito com o samba?
Não, não tem mais não. Já teve. O samba já teve sua época de perseguição, de preconceito, hoje não existe isso mais. Por exemplo: se uma moça namorasse um rapaz que tocava violão, tinha conselho de família! Se fosse de escola de samba, então, mandava a filha viajar. Hoje já não, nas grandes famílias as mães com orgulho dizem “minha filha desfila na Portela”.
Como você vê o funk, as popozudas, os tigrões?
O funk é um estilo de música que tem uma essência muito forte. Ele está sofrendo uma discriminação como o samba já sofreu e está levando prejuízo porque quando o samba era discriminado, o samba não representava comércio. Então você não tinha alguém que fizesse um samba prejudicial ao samba. O que ocorre é que há funks prejudiciais ao funk (risos). Quem ouve o que está tocando nas rádios acha que o funk é isso aí. Mas são também ondas que passam, no Brasil sempre tem uma onda dessas.
Você gosta de funk?
Eu gosto do que é bem feito. Se eu vejo um espetáculo que é bem produzido, bem executado, com boas músicas, cantores, não há como não gostar. Fernanda Abreu, por exemplo, bebe do funk e faz um bom funk. Eu sou fã dela (risos). Há coisas que não são para gostar muito, é só para diversão. Essa história de ter que combater alguma coisa que está fazendo sucesso é uma grande besteira. Ninguém tem que combater. Você tem que fazer, criar. O jornalista não precisa criar um combate. Ele pode dar apoio a outras coisas (riso), escrever sobre as coisas que são legais, mostrar outras coisas ao invés de ficar falando que o fulano é ruim, que isso é uma porcaria. Isso não leva a nada e ainda bota o assunto em evidência (riso).
Você acha que há espaço para outros gêneros musicais no Brasil?
No Brasil sempre há espaço. O problema hoje é que o rádio é dirigido, ninguém consegue arranjar espaço em rádios se não estiver ligado a um grupo, a uma empresa, a uma multinacional. Mas espaço há. Sempre há gente fazendo música, o Brasil é muito grande.
Como você está vendo o carnaval das escolas de samba no Rio?
A escola de samba é um padrão de organização no Brasil. Todas as empresas deviam se basear no padrão delas. Uma escola de samba mobiliza em média quatro mil componentes no desfile. Elas cresceram tanto que hoje qualquer presidente de agremiação fala fácil com o governador (risos). Na informação popular, na cultura, elas contribuíram muito. Elas levantaram muita coisa que não era colocada em evidência no noticiário nacional. Não existe nada mais cultural do que escola de samba. E ainda teve um papel muito grande na luta contra os preconceitos raciais e sociais. Hoje quase todos os presidentes são brancos, antes era uma coisa de negro. Numa escola de samba se misturam todas as classes sociais: numa ala você pode encontrar um intelectual, uma empregada doméstica, uma patroa (riso), um militar, um policial, um jornalista (riso).
Não está industrializado demais?
Ele vai ganhando outras formas. Eu hoje não tenho a mesma emoção que eu tinha no passado. Não é por isso que eu tenho que negar a sua importância. É o espaço maior que o cara tem para manifestar uma opinião. Quem consegue escrever um enredo tem espaço. Escola de samba vive procurando quem tem idéias novas. Eu gostava mais antes porque o componente era mais dono da escola, ele sentia mais a escola, era mais emocionante. Hoje ela está um pouco padronizada mas se você analisar os enredos, vai encontrar enfoques de informações nunca antes colocados na mídia, na cultura, na literatura.
Como foi sua introdução à Vila Isabel?
Durante um tempo, havia 10 escolas de samba. Entre elas, quatro eram grandes: Portela, Império, Mangueira e Salgueiro. Tinham umas intermediárias como Aprendizes de Lucas e a Mocidade Independente. Umas se revezavam entre o 1º e 4º lugar e outras do 5º ao 8º (risos). E duas subiam e desciam. A Vila foi para o primeiro grupo em 1966. O presidente na época, o China, planejou uma forma da Vila não descer. Ele então procurou várias pessoas para ajudar e também me convidou. Ela não só se segurou como entrou pro grupo das quatro grandes à frente do Salgueiro (risos), e olha que o nosso objetivo era o 8º lugar. Depois ficou por um tempo sendo a quarta força, não ganhava, mas sempre estava nesta posição.
Quantos enredos você fez para a Vila Isabel?
Uns 20. Existe uma coisa que é o enredo. Nele qualquer pessoa pode concorrer, se tem uma idéia boa. Não é a letra, é o tema. Aí você defende as idéias. Eu já apresentei alguns temas e em alguns eu trabalhei na elaboração. Em Kizomba, eu tive a idéia do enredo e tomei conta da forma dele. Já em relação aos sambas-enredos, entre a Vila Isabel e a Boca do Mato, eu fiz uns vinte que foram para o desfile e outros vinte que não.
Houve um tempo em que você se afastou da Vila Isabel?
Eu não me afastei nunca. O que há é que tem alguns anos em que eu estou mais ativo na escola do que outros. Isso é normal, não existe afastamento. Quando ela desceu pro segundo grupo, foi um espanto. Isso nunca tinha passado na cabeça do pessoal da escola. Ano passado fiz o enredo, não recuperamos a posição no primeiro grupo, mas nossa auto-estima melhorou e saímos da avenida com a cabeça erguida, com a platéia gritando “é campeã”. Ainda contribuí ajudando a arrumar a sede, usando minha influência com a Benedita da Silva e o governador Garotinho. Quando precisam de mim eu ajudo, quando não, eu deixo pra lá (riso). Pro ano que vem eu acho que a Vila tem tudo para fazer um grande desfile e voltar a ocupar o seu lugar. O enredo é muito legal, é sobre o jogador Nilton Santos. Ela vai voltar pro grupo especial e eu vou ficar de assistente vendo isso!
E o Brasil, para onde caminha?
O Brasil é um país que já pode sentar junto no campo das grandes potências. Em outros setores nós podemos sentar com o pessoal do 3º mundo, junto com os miseráveis, os excluídos. O Brasil tem tudo isso misturado. O problema brasileiro é diminuir as diferenças sociais e econômicas. É um país rico cheio de pobres.
Entrevista concedida a Ricardo Rabelo
Dezembro de 2001