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  • Neville de Almeida: Malditos são os puxa-sacos

    Agenda Bafafá em 02 de Maio de 2016    Informar erro
    Neville de Almeida: Malditos são os puxa-sacos

    Neville de Almeida é um cineasta polêmico. Enquanto é criticado por uns, que acham seu trabalho limitado, é venerado por outros que julgam sua obra genial e acima de seu tempo. Natural de Belo Horizonte, onde iniciou a carreira nos anos 50 no Centro de Estudos Cinematográficos, sua filmografia inclui 11 longas (entre eles A Dama do Lotação, Rio Babilônia, Os Sete Gatinhos), quatro curtas e 8 documentários.

    Nesta entrevista ao Bafafá, Neville faz uma análise do atual quadro do cinema nacional e defende a democratização da concessão de patrocínios hoje em mãos "das elites do cinema". O cineasta ataca duramente a critica de que faz um "cinema maldito" e garante que o rótulo nada tem a ver com sua obra.

    Como está vendo as críticas do cineasta Cacá Diegues contra o que chamou de "dirigismo cultural" do governo Lula? Eu acho que o cinema brasileiro não é uma pessoa, não é uma associação. A crítica do Cacá é válida, é oportuna neste momento em que está começando um novo governo. Ao mesmo tempo não há como negar que existe um "dirigismo" das elites do cinema que dominam os patrocínios que nós definitivamente temos que democratizar. Cabe à imprensa fazer uma pesquisa para constatar quem tem recebido mais financiamentos do governo e aprofundar a questão.

    Qual quadro faz do cinema nacional? O cinema nacional precisa de oportunidade. O maior concorrente de nossa indústria é cinema americano. Toma como exemplo o Oscar que tem dois bilhões de espectadores. O que é isso? É a maior jogada de marketing do planeta. Numa noite, de auto-glorificação da indústria americana, durante quatro horas esse público todo admira o produto que amanhã vão vender para você. No entanto os filmes do resto do mundo ocupam apenas dois minutos da cerimônia. Isto que é resto. É com essa gente que nós concorremos. Acho que o cinema brasileiro tem mais qualidade, mais verdade e criatividade do que o cinema americano, que é viciado em formas, regras e em efeitos especiais elementares, ridículos e infantis.

    Nosso cinema não peca pela falta de técnica? A gente vive num mundo globalizado, onde todo o mundo faz a mesma coisa. O mesmo computador que tem no Brasil tem nos EUA, o mesmo filme que eles usam nós usamos, o ácido químico para revelar o filme, às vezes até os mesmos laboratórios. Isso em relação também ao som, à imagem. Inclusive tem uma relação enorme de filmes brasileiros finalizados nos EUA com os mesmos técnicos dos melhores filmes americanos. Eu acho que o que existe no Brasil é linguagem, o brasileiro é mais profundo, mais criativo e é capaz de oferecer uma maior gama de diversificação ao fazer cinema. Os americanos fazem sempre os mesmos filmes e as pessoas querem continuar vendo. É até chato quando vemos um filme americano pois sempre adivinhamos como será o fim. Não quero ser radical. Reconheço a enorme importância do cinema americano. Filmes geniais. Grandes diretores como Scorsesi, Orson Welles, Robert Grifith, Spik Lee e mais outros. Mas a maior parte do cinema americano atual é um cinema primário, é o mocinho e o bandido. O bonitinho, fortinho e bem armado é o americano. O bandido sempre vem de populações do Terceiro Mundo, explorado por essas pessoas. O cinema dos EUA privilegia a diversão diabólica, falsificada, envenenada. Quando você vê hoje a guerra do Iraque quando um país invade o outro a 20 mil quilômetros de distância sem nenhum motivo, pois não havia armas de destruição em massa, os americanos aplaudem pois acham que estão ganhando a guerra. O cinema ajudou muito a isso. Eles vêem a guerra como se estivessem vendo um filme. Chegam a achá-la linda, como se fosse um videogame. Por isso que parte do povo americano apoia esta guerra injusta, covarde e absurda pois acreditam nas histórias que inventam para tentar justificar esta ignominia, de invadir um país para roubar o seu petróleo. Ao chegar a Bagdá os Estados Unidos ocuparam imediatamente a estatal de petróleo e deixaram os museus serem saqueados. Porque que não invadem a Coréia? Porque que não vão libertar o Tibet que a China invadiu e onde matou um milhão de pessoas? Se estão tão preocupados com os direitos humanos têm que ir até lá.

    Porque o cinema nacional praticamente só aborda dramas sociais? Existe todo tipo de filme no Brasil. Há uma tendência de tirar proveito da pobreza mas existem espaços para todos os segmentos.

    Como reage ao rótulo de fazer um "cinema maldito"? Foi um rótulo inventado pelos inimigos da criatividade, da experimentação, pelos incapazes. Desta forma quiseram atacar, ridicularizar, jogar uma pecha, um selo, em filmes que estavam além do tempo e do espaço. Eles quiseram desta forma diminuir a importância de filmes importantes. Eu não aceito este rótulo. Malditos são os puxa-sacos do governo, da revolução, os que ficaram em cima do muro nos momentos difíceis que vivemos. Malditos são os gigolôs da tragédia social, os que só se pronunciam para tirar proveito pessoal. Para mim não existe cinema maldito, para mim existe o cinema de invenção, de criação, puro, de experimentação. O cinema primitivo feito com idéias originais, cinema livre.

    Qual é o segredo para um filme dar certo? Existir talento. Às vezes pessoas sem talento querem fazer a roda quadrada, forçando um sucesso artificial. O segredo é ter talento, dizer a verdade, ser sincero, honesto, ter a capacidade de olhar em volta de si. Quando um cineasta é capaz, com honestidade e sinceridade, refletir o seu tempo e a sua época, provavelmente está no caminho do sucesso. Agora existe também outro sucesso. O da picaretagem, da mentira, da armação, do marketing fajuto, feito através do dinheiro e da publicidade. Esse não vale pois não fica.

    A sétima arte será para sempre? Acho que todas as artes são para sempre. Existem tentativas da burguesia e da direita, dos eternos conspiradores, ejaculadores precoces, dos eternos frustrados, de jogar as artes uma contra as outras.

    Você é de esquerda? Eu sou uma pessoa..... de esquerda. Acho que sou de esquerda. É uma palavra envenenada, difícil. Eu estou totalmente ligado ao meu povo, ao meu país, ao momento que eu vivo. Eu sou um artista que quando não estiver mais aqui e olharem o que eu fiz, vão poder saber exatamente o que estava acontecendo. Se alguém quiser saber como era o Rio de Janeiro no princípio dos anos 80 veja Rio Babilônia. Se alguém quiser saber como era o moral, os bons costumes e a hipocrisia da sociedade dos anos 70 veja A Dama do Lotação. Quanto mais o tempo passa, melhor meus filmes ficam. Eles são um espelho e um reflexo da sociedade brasileira. Eu não julgo, eu mostro. O artista faz melhor quando expressa, quando é um reflexo, um espelho, quando não fica tentando manipular a nossa realidade. Somos um país grandioso, vivendo tragédias enormes por causa da corrupção, dos maus governos, das injustiças sociais que ainda não foram resolvidas.

    Como está vendo a violência no Rio de Janeiro? É o resultado da falta de governo, de seriedade. Nós temos que ter uma postura de brasileiros, lutar pela liberdade de todos, inclusive das pessoas que moram em favelas. Tem que dar mais dignidade a estas comunidades. O Favela-Bairro é muito pouco, é apenas uma fachada que se usa para campanha. Não pode ser Favela-Bairro. Está errado. Eu sei que ganhou prêmios no exterior. Prêmio de quem não mora lá. O Favela-Bairro tem que virar Bairro sem Favela. É isto que tem que ser. O resto é fachada para fins e usos estrangeiros. Tão faltando ações realistas, verdadeiras, sinceras e não eleitoreiras. Tá faltando um governo de fato, humanista, que represente os direitos de todos. Quem mora em favela também quer se livrar da violência. Temos que exigir isso. Temos que ter um governo que tome medidas sérias e profundas para alterar a realidade. O povo está abandonado, desprotegido.

    Maio de 2003 Entrevista concedida a Ricardo Rabelo



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