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  • Ratinho: sempre houve discriminação contra o samba

    Agenda Bafafá em 17 de Agosto de 2020    Informar erro
    Ratinho: sempre houve discriminação contra o samba

    Alcino Correia Ferreira, conhecido como Ratinho, é um dos mais respeitados compositores de samba da atualidade. É autor de sucessos como "Vai Vadiar" e "Coração em Desalinho", gravados por Zeca Pagodinho.
     
    Nascido em 05 de março de 1948, em Armamar, Distrito de Viseu, Portugal, veio aos quatro anos de idade com a família o para o Rio de Janeiro e foi criado no subúrbio, em Pilares.
     
    Ainda pequeno, Ratinho - apelido que ganhou do dono da quitanda por gostar de frutas - começou a conviver com a alegria e a fantasia do carnaval carioca.
     
    Sua iniciação começou na quadra da Caprichosos de Pilares, onde em 1973 ganhou uma disputa de sambas com Aclamação e Coroação de D. Pedro I e obteve grande projeção.
     
    Não demorou para frequentar a Mangueira e o Salgueiro. O sambista é autor de mais de mil sambas, sendo 300 gravados por artistas renomados como Alcione, Almir Guineto, Ivete Sangalo, Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra, Leila Pinheiro, entre outros. 

    Em entrevista exclusiva ao Bafafá, Ratinho fala sobre a juventude e infância, samba e bossa nova. Sobre esta última, não economiza críticas: "Passaram 50 anos e ninguém fala em bossa nova. Sempre houve discriminação contra o samba. Criaram uma bossa nova para discriminar o samba do morro, mas só que era o samba do morro que cantavam", dispara o compositor. 

    Como foi sua iniciação ao samba?
    Desde criança, com nove anos, já gostava de samba. Na minha adolescência gostava de correr atrás de bola pipa, soltar, banho de rio e também de samba, muito samba. Ele brotava pelos cantos nos morros, no asfalto. Eu frequentava um Caprichosos de Pilares. No final da década de 50 passei a ir à Portela e à Mangueira de 65 para 66, além do Salgueiro na mesma época. Com 14 anos comecei a fazer umas letras e os amigos me incentivavam. Eles ficavam admirados d'eu compor sambas. Alguma vezes eu fazia letras na hora, de momento. Era inspiração, não tinha gravador. Instrumento eu nunca toquei nenhum. Até era desafinado para cantar. Mas a música vinha de algum lugar, mandavam para mim (riso). 
     
    O que inspira o samba?
    O amor, o cotidiano. Antigamente o samba era escola de samba. Você tinha vários estilos que retratavam, geralmente, uma história local. O samba enredo no início da década de 60 não era comercial e então prevalecia o samba de quadra, de terreiro. Quem frequentou até 70 teve esse gosto de aprender muita coisa com compositores como Silas de Oliveira, Monarco, Candeia. Tudo isso foi espelho para meu aprendizado. 
     
    Quantos sambas já compôs com o Zeca Pagodinho?
    Eu devo ter uns mil e poucos sambas, sendo 800 inéditos e 300 gravados. Gravei 19 músicas em parceria com o Zeca Pagodinho. Quando ele estava iniciando no Cacique de Ramos, eu já enxergava seu talento e abertamente dizia que se tratava de um fenômeno. Ele é um autêntico versador, improvisador. Já estava escrito que ia ser aquilo. Ele admirava meus sambas e passamos a andar juntos em Pilares, também ao lado do Arlindo Cruz. Fizemos algumas letras juntos. Eu é que descobri ele, não foi ele que me descobriu (riso). O Zeca compõe muito bem. Este lado ficou um pouco relegado porque ele abriu as portas para uma porção de compositores desconhecidos e parou de gravar suas letras. Muita gente pensa que ele não é compositor, mas ele tem muita música bonita. 
     
    Qual é a diferença entre o samba de hoje com o de antigamente?
    O samba de hoje, nas escolas de samba, não tem referência. Acho muito fraco na melodia e na letra. O samba-enredo acabou com o samba de quadra. Hoje, um samba chega a ter 10 parceiros, isso é um absurdo! Antigamente fazia só um. Na verdade, ninguém queria fazer samba-enredo  porque não dava nada e acabava depois do carnaval (risos). O samba de meio de ano, de terreiro, era cantado o ano inteiro. Quantos amores foram conquistados com sambas de terreiro? (riso). Os compositores eram admirados pelas pessoas porque eles arrumavam namoradas para os outros (riso). Hoje não tem mais samba de terreiro nas quadras, isso esvaziou as escolas. Este samba está sendo revitalizado em lugares como a Pedra do Sal, o Clube Renascença e Cacique de Ramos. 
     
    Você acha que esgotou o modelo das escolas de samba?
    Não é questão de esgotar. As pessoas que assumiram o samba da década de 60 para cá foram desvalorizando a prata da casa. Partiram para um espetáculo visual que deixou o desfile muito comercial. Quem vai ao sambódromo é turista, ator, modelo. Hoje, se uma pessoa feia estiver sambando é tirada para a menina bonita aparecer. Os carnavalescos não se preocuparam com o que já tinha nas escolas, quiseram modificar. Botaram alegorias enormes e passaram a fazer um carnaval da cintura para cima (risos). Com isso, deixaram de ver o passista e a evolução que inclui canto, dança e harmonia. Uma coisa tem que estar sintonizada com a outra.
     
    Samba é uma redescoberta  a fazer, como analisa?
    A Lapa foi buscar alguma coisa no passado. Mas, lá também é comercial, não tem característica de preservação. Ainda assim, muitos jovens estão aproveitando uma coisa muito boa que as escolas jogaram fora. Eles têm bom ouvido e a percepção do que é bom. No rádio não se escuta mais samba. O Zeca é uma exceção, mas daqui a pouco pode não estar. Tudo é moda. 
     
    O pessoal do samba é unido?
    Quem é mais unido é o pessoal do sertanejo. Em qualquer categoria não há união, o cara primeiro pensa nele. Nós vivemos uma época muito difícil em fraternidade, humanidade. O cara é capaz de subir nas costas do outro para aparecer.  
     
    Por que as emissoras de rádio não tocam samba?
    Hoje as emissoras são manipuladas pelas gravadoras e quem está de fora tem que tocar para pagar. As rádios repetem todos os dias as mesmas músicas, é só reparar (risos). Eu tenho quase 60 anos. Quantas vezes tu viu minha cara na televisão e nos jornais? No entanto, tu viu minha música "Vai Vadiar" estourar no Brasil, mas ninguém conhece o compositor. Eu não sou cantor e não fiquei ostracismo (riso). 
     
    A bossa nova é tão importante quanto o samba?
    A bossa nova é um samba que o pessoal da Zona Sul, tentou acompanhar e ficou daquele jeito (riso). Aquela modalidade rítmica já tinha há muito tempo com o Jaime Silva e o Geraldo Pereira, ao contrário da apregoada novidade. A bossa nova criou um movimento, mas o samba já existia. A bossa nova não tem vida própria. Passaram-se 50 anos e ninguém fala em bossa nova. Sempre houve discriminação contra o samba. Criaram uma bossa nova para discriminar o samba do morro, mas só que era enguias do morro que cantavam o samba (riso). 
     
    Outros estilos musicais, além do samba, poden surgir?
    Os estilos musicais fortes estão aí. O funk é popular, ganhou a adesão da garotada. Agora, a qualidade é discutível. O samba é uma resistência à sua própria natureza, veio do gueto, das senzalas. Aqui tomou uma roupagem diferente, misturou com uma coisa lusitana, como cordas que era só percussão. 
     
    Qual recado você daria para um jovem sambista?
    Hoje em dia está tudo muito falso. O recado que dou é para ele ter a cabeça no lugar e não se influenciar. Tudo é passageiro e hoje as coisas são descartáveis. Não deixe de estudar, buscar outro objetivo mais sólido. 
     
    Tem alguma utopia?
    A minha utopia é escrever o sonho de ver um mundo melhor.
     
    Novembro 2008


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