Nascido em Caratinga, Minas Gerais, Ruy Castro mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 60. Jornalista com passagem em importantes jornais e revistas, acabou virando um dos principais escritores do País, sendo autor de biografias sobre a Bossa Nova, Ipanema, Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda.
Nesta entrevista exclusiva ao Bafafá, Ruy Castro fala sobre sua juventude, a descoberta das letras, a política e seus livros. Sobre sua mais recente obra, “Carmen”, que conta a história da artista Carmen Miranda, faz uma análise completa sobre o processo de criação e a coleta de informações que permitiram fazer uma radiografia da artista brasileira mais famosa do mundo, que morreu de enfarto em 1955. “Nos EUA, quando se defrontou com o capitalismo, ela passou a não ser mais dona de si, era requisitada pelo teatro, cinema, rádio, propaganda, lojas. Empolgada, foi em frente e para agüentar isso tomava anfetaminas para ficar acordada e barbitúricos para dormir e acabou ficando dependente. A droga matou Carmen Miranda. Ela foi traída pelas conseqüências nefastas destes medicamentos”.
Fale sobre sua infância e juventude?
Nasci em 1948, que eu considero um ano muito bom, pois isso me permitiu estar apto a observar bem os anos 50. Aos quatro anos, aprendi a ler e tinha consciência de muitas coisas que estavam acontecendo.
Me lembro perfeitamente da morte do Francisco Alves, de Getúlio Vargas, da Carmen Miranda, do surgimento do Elvis Presley, fatos considerados hoje ícones dos anos 50 e que presenciei enquanto estavam acontecendo. Uma das grandes vantagens de uma infância numa cidade pequena, onde as coisas chegam com um pouquinho de atraso, é que você acaba de certa maneira sendo contemporâneo de coisas anteriores até ao de teu nascimento.
A 2º Guerra Mundial, que tinha acabado três anos antes de eu nascer, ainda era discutida como uma grande atualidade (riso). Vim morar no Rio no início dos anos 60, apesar de desde 54 dividir meu tempo aqui e lá. Eu só fui conhecer um banco de escola aos nove anos pelo fato de já saber ler e escrever. Me dispensavam de ir à escola onde entrei pela primeira vez no final do quarto ano primário. O ginásio eu estudei no Colégio Minas Gerais.
Quando descobriu a vocação pelas letras? A fascinação começou quando aprendi que aqueles símbolos impressos significavam coisas. Todo mundo acha natural que uma criança tenha vocação para desenhar, para a música. Eu tinha vocação para as letras. Aprendi a copiar aqueles símbolos e formar com eles sílabas, palavras e idéias.
Antes dos cinco anos já escrevia com a máquina de escrever de meu pai, quando percebi que era só meter o dedo ali para produzir uma letra. Eu tive a sorte de ter um pai que me liberava completamente na compra de gibis, livros e jornais. Não podíamos jogar nada fora. Esse é um hábito que tenho até hoje (riso).
Como foi sua carreira de jornalista?
Sempre foi o que imaginei que queria fazer, exceto talvez de meu remoto sonho de ter sido o meia-esquerda do Flamengo (risos). Como isso seria impraticável, eu visualizei a redação de jornal. Quando adolescente eu escrevia para pequenos jornais de Caratinga e assim que me senti em condições de tentar alguma coisa no Rio vim para cá.
Em 1967, aos dezessete anos, fui trabalhar no Correio da Manhã como repórter. Meu primeiro dia no jornal foi também meu primeiro dia na Faculdade Nacional de Filosofia, onde cursaria Ciências Sociais. Foi quando deu para ver exatamente o que eu queria fazer.
Não ia quase nunca à faculdade, acabei me formando misteriosa e milagrosamente ao cabo de cinco anos, quando deveriam ter sido quatro. Eu sou a prova da falência do ensino brasileiro, pois devo ter sido o pior estudante da história da faculdade. Eu só ia para conspirar, namorar já que o ambiente era ótimo. Tive a dignidade de jamais ir buscar o diploma (riso). Já passei por todas as redações, com a exceção de O Globo.
Quando decidiu ser escritor?
Em 1986 comecei a ter umas idéias que não cabiam mais em artigos de jornais, só em livros. Deu certo e não voltei mais atrás. A essa altura da vida, o melhor mesmo é ficar em casa (riso). O jornalismo de certa forma exige juventude.
Todos os livros que escrevi exigiram uma atividade que sem a minha tarimba de imprensa não seriam possíveis. Isso só pode ser feito a partir de conversas com pessoas a fim de procurar e localizar personagens perdidos há mais de trinta anos, que não ficaram famosos nem ricos. Muitos moram nos caixa-prego dos mais distantes subúrbios, muitas vezes sem telefone (riso).
Compete ao biógrafo localizá-los e assim às vezes ter a sorte de encontrar fotos, recortes de jornais sob o objeto da pesquisa. Se você não pôde participar da história quando ela estava acontecendo você pode estar com uma pessoa que estava na história.
A indústria do entretenimento fala mais alto que o pensamento, o intelecto?
Sem a menor dúvida. É só você ver os segundos cadernos que se baseiam na agenda. Se não acontecer nada e não houver lançamentos de filmes, discos e shows, eles simplesmente não saem. São absolutamente dependentes da indústria de releases que alimentam os pauteiros.
É muito raro encontrar uma matéria que tenha sido pensada além do dia-a-dia. Os jornais estão formando ou deixando de formar leitores ao darem essa importância toda a coisas que não têm nada a ver com a leitura.
E a nossa televisão? Congrega ou aliena?
Sou pouco indicado para falar sobre televisão. O Jornal Nacional eu assisto de cinco em cinco anos. Só vejo futebol. Para me manter informado leio dois jornais por dia, quatro nos finais de semana e acesso a Internet.
No livro “Ela é Carioca” você diz que o bairro de Ipanema foi laboratório do comportamento no Brasil. Por que?
Talvez devido à configuração geográfica. Isso permitiu o florescimento de uma série de comportamentos, atitudes e posturas que depois se tornariam corrente na sociedade em matéria de sexo, moral, moda. O que contribuiu para isso foi a quantidade de estrangeiros em Ipanema.
Muitos vieram para cá fugindo da crise econômica na Europa, provocada pela queda da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Isso trouxe uma visão de mundo que se deu muito bem à beira mar, dentro daquele espaço tão pequeno, autocontido. Você não tinha isso em Copacabana que era muito grande, espalhado. Eu parti da idéia de que muita gente que tinha ficado notória na cultura brasileira era de Ipanema ou circulava no bairro. Eu não sabia o que ligava essas pessoas entre si.
“O Anjo Pornográfico” conta a trajetória de Nelson Rodrigues. O que mais chamou atenção? A grande originalidade e o certo gênio intuitivo dele. O Nelson era de estudo precário, apesar de filho de jornalista. Sua formação cultural nem por sombra era comparável aos grandes literatos mineiros, nordestinos. Ainda assim, era capaz de uns insights surpreendentes, de uma atualidade monstruosa. Algumas peças dele refletem verdades humanas que você tem que procurar muito na literatura. Tudo o que ele falou sobre a China, a União Soviética e tudo mais acabou acontecendo.
Já com “Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha” - você teve problemas com a família do protagonista. Por que razão?
Não com a família, que ficou neutra na história, e sim com seus advogados. Eles processaram a editora alegando que não houve autorização para falar sobre o Garrincha. Só retirariam o processo se fosse pago um milhão de reais. A editora, para não abrir um procedente perigosíssimo, preferiu enfrentar o processo que se arrasta até hoje. O mais relevante da pesquisa foi ter revelado que Garrincha tinha uma origem muito mais indígena do que negra. Isso era inédito e mudou toda a minha visão sobre ele.
Em seu livro "Chega de Saudade", você narra a gestação da Bossa Nova. O que mais destaca?
A sofisticação musical do povo brasileiro é uma coisa extraordinária. Mas, não começou com a Bossa Nova, ao contrário. O Rio de Janeiro, quando era capital, foi talvez uma das cidades mais sofisticadas do mundo. Se você morasse no Rio nos anos 20 em diante você teria acesso a todo tipo de música produzida na América Latina, Europa e também pelos negros, pelos nordestinos.
Tudo se misturou e se gestou. Isso acabou levando inevitavelmente à Bossa Nova, que não foi inventada na casa de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, foi um longo processo que veio de muito antes. O João Gilberto é o grande sintetizador da maneira de tocar e de cantar da Bossa Nova, mas sua melhor contribuição foi a maneira de tocar o violão, aquela batida sincopada que acompanha a batida do samba de uma maneira mais simplificada e por isso também mais complexa.
Já esse canto seco, fora da tradição lírica, começou bem antes em 1925, quando inventaram o microfone. Apareceram cantores com voz curta, pequena, que cantavam praticamente falando. Não tinha novidade nenhuma nisso.
Em 'Carmen', você apresenta a história de Carmen Miranda a partir de informações, não de interpretações. Como foi o trabalho de pesquisa?
Falei com mais de 180 pessoas. O livro é um processo diferente da matéria de jornal ou de revista. Você tem mais tempo para trabalhar. Nesse período, quando você lida com esse elenco de personagens e um grande naipe de fontes, você se torna a prova de ser tapeado. Você começa a saber mais sobre o personagem do que seu informante.
Não adianta vir me contar uma história que não está batendo e que eu sei que não aconteceu. O mais importante é que você sabe que o personagem nasceu aqui, morreu ali. O que aconteceu no meio do caminho você tem apenas um esqueleto, uma vaga idéia. Ao longo da pesquisa, você acaba se deparando com uma informação que cruza com a outra, preenche um espaço, um buraco, como num quebra-cabeça.
Como foi a juventude de Carmen?
Quando deixou Porto em Portugal, em 1909, para morar no Brasil, a cidade tinha menos portugueses do que no Rio de Janeiro. Filha de um barbeiro e uma dona de casa, dos seis aos dezesseis anos (entre 1915 e 1925), Carmen morou na Lapa, que estava começando a ser a Lapa boêmia, cosmopolita, ao contrário de então, um bairro católico, religioso, com conventos e seminários. Sem que isso esteja formulado no livro, a personalidade de Carmen Miranda expressa exatamente isso, uma mulher moderna, cosmopolita, mas que no fundo era uma menina católica.
Como aconteceu o sucesso precoce de Carmen?
Quando começou a gravar discos em 1929, já estava pronta. É só ouvir. Dez anos depois, quando foi para os Estados Unidos, já era a Carmen Miranda. Ela se preparava, era uma grande profissional.
Confere que durante as turnês, ela não dormia mais de duas horas? Ela não dormia. Nos EUA, quando se defrontou com o capitalismo, ela passou a não ser mais dona de si, era requisitada pelo teatro, cinema, rádio, propaganda, lojas.
Ela, empolgada, foi em frente e para agüentar isso tomava anfetaminas para ficar acordada e barbitúricos para dormir. Ficou dependente. Com essa coisa progressiva, o uso tende a ser cada vez maior, já que não faz mais efeito.
Em 1949, para ela dormir já era muito difícil. Numa temporada dela em Londres, teve que ser anestesiada. Com isso ela pagou um preço monumental em seu organismo, que fez com que em 1955 morresse do coração, aos 46 anos.
Isso numa família de mulheres altamente longevas. A mãe dela viveu mais 12 anos. De suas irmãs, Aurora morreu aos 90 e Cecília ainda está viva com 93. A droga matou Carmen Miranda. Produtos médicos que eram distribuídos largamente naquela época, sendo inclusive usados na guerra pelos soldados americanos. Uma geração inteira, milhões e milhões de pessoas, foram feitas de cobaias, inclusive a Carmen. Ela foi traída pelas conseqüências nefastas destes medicamentos.
Que fim levou a herança deixada pela artista?
Carmen ganhou muito dinheiro, ainda no Brasil de 29 a 39. Comprou uma boa casa para a família na Urca e o resto ela dissipou doando esse dinheiro. Se alguém precisasse, ela simplesmente dava. Sustentou ainda três santos de devoção: Santo Antônio, Santa Tereza e São Judas Tadeu. Fez muita caridade sem que ninguém soubesse.
Quando foi para os EUA, passou a ganhar mais e em dólares. Em 1944, foi a mulher que mais ganhou dinheiro no mundo. Ela comprou casa em Beverly Hills, casa de verão em Palms Spring, jóias, barras de ouro e entrou numa sociedade de petróleo com John Wayne e Clark Gable.
Quando Carmen morreu, o viúvo dela, o americano David Sebastian, mandou para o Brasil apenas os objetos pessoais e ficou com tudo. Ela não deixou testamento, pois não gostava de falar em morte. Sebastian faleceu há cerca de 10 anos e deixou tudo para os herdeiros.
Verdade que chorou ao escrever o final do livro?
Não me contive, chorei. Ela morreu em casa, depois de um enfarte, e assim ficou por trinta minutos até ser achada. Ela morreu nos bastidores. Outro motivo que me fez chorar foi porque durante o livro tive que enfrentar um tratamento contra o câncer na garganta.
Quando soube do diagnóstico estava no capítulo quatro, quando terminei estava no 30. Misteriosamente consegui fazer o tratamento e terminar o livro. Agora estou zerado, com a garantia para os próximos anos.
Janeiro 2006
Entrevista concedida a Ricardo Rabelo, editor da Agenda Bafafá