Se há alguém que possa sintetizar o tão decantado espírito carioca, esse alguém é o jornalista Sérgio Cabral. Ao lado de nomes como Henfil, Jaguar, Ziraldo e Millôr, integrou a equipe lendária do Pasquim, jornal que foi uma pedra pontiaguda no sapato da ditadura militar. Especializou-se em samba, carnaval e futebol, assuntos que são paixões não apenas cariocas, mas brasileiras. Do alto de seus 64 anos, ele é daquele tipo com que você se senta para conversar e não vê a hora passar. E as inúmeras histórias que tem pra contar impressionam pela riqueza de detalhes, principalmente de datas.
Nascido em Cascadura, em 17 de maio de 1937, Sérgio Cabral perdeu o pai aos quatro anos de idade e, junto com duas irmãs mais novas, foi criado com dificuldades pela mãe, que era empregada doméstica. Órfão de pai, mudou-se com a família para a casa da avó, em Cavalcanti, onde permaneceu até se casar. Cursou o primário na escola municipal Moreira, um colégio interno no bairro do Rocha, onde passou quatro anos. Casado com Magaly desde 1962, pai de três filhos e com oito netos, vascaíno apaixonado, já foi três vezes vereador e integra há oito anos o Tribunal de Contas do Município.
Quando iniciou a atividade jornalística?
Em 1957, no Diário da Noite, um vespertino popular dos Diários Associados. Comecei como repórter de polícia e depois passei para geral, onde cobria de tudo. Conheci Ubiratan de Lemos, repórter de O Cruzeiro. Ele foi fazer uma matéria lá em Cavalcanti sobre um sujeito chamado Lourival de Freitas, que recebia o espírito de Nero e fazia coisas incríveis. Ai eu perguntei para o Ubiratan: “como eu faço para ser jornalista?” Ele pediu pra eu passar no dia seguinte no Diário da Noite onde fui apresentado ao editor-chefe João Rocha, que me aceitou pra fazer estágio. Acabei efetivado quando sugeri o título de uma matéria na qual Juscelino Kubistschek estava anunciando a liberação de uma verba para uma cidade mineira que havia sido atingida pela enchente. “JK promete dar o que temporal tirou”, foi esta a frase que me tornou jornalista.
Como foi participar de um projeto como O Pasquim?
Foi fantástico, até hoje me marca. Eu era editor-político do Última Hora, quando em junho de 1969 me juntei ao Tarso de Castro, ao Murilo Reis (que era sócio do jornal A Carapuça, com o Sérgio Porto, que acabara de falecer) e ao Jaguar. O nome foi sugerido pelo Jaguar, em alusão à história do Monsenhor italiano Pasquino, que escrevia notícias e fofocas que eram lidas nas praças. Daí em diante, todo jornal ruim e controverso passou a ser chamado de Pasquim.
Vocês penaram, em plena ditadura, né?
Enquanto a gente adorava fazer o jornal a ditadura adorava esculhambar a gente. Logo nos primeiros números colocaram uma moça para censurar, que ficava o dia todo na redação.
Qual era a tiragem?
A primeira edição tinha 14 mil exemplares. Tivemos que reimprimir a mesma quantidade, já que esgotou antes das dez da manhã. E olha que só tinha saído uma notinha no Jornal do Brasil. Foi uma febre. No segundo número rodamos 40 mil. Quatro meses depois já eram 100 mil exemplares.
Ninguém ganhou dinheiro?
Que eu saiba não. Eu sei que Jaguar não ganhou, o Tarso não ganhou, nem eu. Acontece que era pessimamente administrado. Era uma burrice de jornalista e intelectual de achar que organizar empresa era careta, uma coisa menor.
Qual foi o melhor momento do Pasquim?
Foi pouco antes de nossa prisão, em 1970, quando chegamos a 250 mil exemplares por semana. O exército invadiu a redação e prendeu todo mundo com as acusações mais variadas. Eu fui informado em Campos, onde tinha ido fazer uma palestra, que os militares estavam atrás de mim e acabei me apresentando. Ficamos dois meses presos.
É verdade que na cadeia ficaram amigos do carcereiro?
Nós estávamos detidos no Batalhão de Manutenção do Armamento do Exército. Num sábado, o oficial de dia foi conversar conosco e abriu a grade pra mim e o Ziraldo. Acabou nos oferecendo uma cerveja e depois de um papo mandou buscar um violão que acabou nas mãos do sentinela, que por sua vez me pediu para segurar sua metralhadora. E lá ficamos até o capitão se tocar que aquilo era esculhambação demais.
Era mais fácil fazer jornal durante a ditadura do que agora?
Não. Acontece que havia sede por um tipo de informação que só o Pasquim dava.
Porque não temos mais nenhum jornal de opinião?
Eu não sei. É um mistério da comunicação.
Como é estar do outro lado, fiscalizando o dinheiro público?
O que me deixa satisfeito ao desempenhar esta função é que ajudo o Rio de Janeiro a impedir que se façam contratos prejudiciais à cidade.
Teu forte agora são as biografias? Quantas você já fez?
Como estou impossibilitado legalmente de trabalhar em jornais e revistas, eu faço meus livros. A bem da verdade eu já publicava desde 1974, quando lancei um livro sobre escolas de samba. Em 1978, escrevi minha primeira biografia, sobre Pixinguinha. Depois fiz as biografias de Tom Jobim (de tiragem limitada), do Almirante - um personagem do rádio e pesquisador de música, do Ari Barroso, da Eliseth Cardoso e agora a de nossa querida Nara Leão.
Você é também especialista em carnaval. Como foi sua introdução a este mundo?
Eu sou de Cavalcanti, um subúrbio de Madureira. As pessoas eram divididas entre a Portela e o Império Serrano cujos ensaios eu frequentava desde os 11, 12 anos. Na época, a grande vitória era cantar para os amigos um samba novo da Portela que ninguém conhecia.
E o Brasil? Para onde caminha?
Eu sonho com um Brasil democrático em todos os pontos de vista. Que o povo tenha oportunidade de estudar, trabalhar, produzir. Eu sonho com esse dia.
Entrevista concedida a Ricardo Rabelo e publicada no nº 1 da edição impressa do Bafafá.
Outubro de 2001