Nascida e criada no bairro de Madureira (subúrbio do Rio de Janeiro), a portelense Iranette Ferreira Barcelos, a Tia Surica, é um dos nomes mais respeitados da história do samba e idealizadora da feijoada que leva seu nome. Sua carreira musical começou em 1957 quando fez parte do coro do LP "A Vitoriosa Escola de Samba da Portela". Nove anos depois, a convite de mestre Natal, foi a primeira intérprete da azul e branco com o samba-enredo "Memórias de um Sargento de Milícias", de Paulinho da Viola.
Esbanjando simpatia, Tia Surica fala com exclusividade ao Bafafá. Questionada se tem algum recado para os novos sambistas, não titubeia em responder: “Só em ver essa garotada tocando samba é uma satisfação muito grande”, garante. Sobre o governo Dilma: “Gosto dela, ainda assim sou mais o Lula, ele é mais humano”, segreda.
Como foram a sua infância e juventude?
Sou nascida e criada em Madureira. Minha infância não foi das piores. Tive uma boa formação e bons princípios. Quando perdi meus pais, fui criada pelos avós maternos Amélia e José e a minha mãe de criação Evangelina. Nunca passei dificuldade, foi uma infância pobre, mas não miserável. Meu avô era da aeronáutica, tive tudo que eles podiam dar.
Por que o nome Surica?
Foi uma coisa interessante. Dizem que suriquinha é derivado de um objeto roliço e curtinho. Como sempre fui gordinha (1m 47 e mais de 70 kg), minha avó dizia que parecia uma suriquinha e bordou isso em uma fronha. E aí, pegou. Só agora nas entrevistas sobre minha carreira solo é que as pessoas ficaram sabendo que meu nome é Iranette.
Como o samba entrou em sua vida?
Em 1944, levada pelos meus pais aos quatro anos. Eles faleceram e eu dei continuidade. Sou portelense de coração. Meu sangue é azul e branco (riso). Em 55 a Portela gravou um LP e eu participei do coro pela gravadora Sinter. Gostaram de meu timbre de voz.
A senhora foi a primeira mulher intérprete na história do carnaval?
Fui a primeira da Portela em 1966 com o samba-enredo "Memórias de um sargento de milícias", autoria de Paulinho da Viola. A primeira mulher foi Silvana (Império Serrano).
De quem partiu o convite?
Estávamos ensaiando no Imperial (hoje, Pólo 1 de Madureira). Começaram a prestar a atenção no meu timbre. Natal, com aquela delicadeza (ironiza), chegou e disse: "Você é quem vai puxar o samba na avenida" (riso).
Gostaria de repetir a dose?
Já não tenho mais aquele pique. Hoje, o samba-enredo, aquela coisa acelerada, tem que ser mesmo para homem. Estou voltada para minha carreira solo.
Como é fazer parte da Velha Guarda da Portela?
Entrei na Velha Guarda em 80. Para mim é uma honra, abriu as portas para fazer coro com vários artistas: Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Marisa Monte. Agradeço muito. Tenho minha carreira solo, mas concilio com a velha guarda. Já cantamos na Bélgica, Alemanha, Paris, Roma e no Brasil todo.
O que está achando dos desfiles na Sapucaí?
Estranho muito. Mas, como dizem que o samba evoluiu, tenho que acompanhar. Antigamente o pessoal vestia a camisa da escola, hoje em dia todo mundo se diz sambista. Enquanto tiver saúde e condições estarei lá.
Qual a sua opinião sobre o samba atual?
O samba perdeu um pouco a sua essência. Antigamente eram muito mais bonitos, cadenciados, melódicos. O tempo do desfile (80 minutos) não comporta. A bateria tem que acompanhar o ritmo do samba. Se vier com aquela cadencia vai arrastar. Hoje em dia você não desfila, mas corre na avenida.
Quando dou festa aqui em casa, faço uma roda de samba redonda, só de sambas antigos. Se você quiser ouvir samba de raiz é aqui em casa ou no pagode da Doca (Tia Doca). Não abro espaço para todos. Só para amigos e colegas. A gente não sabe quem é quem. Já vieram aqui Beth Carvalho, Alcione, Zeca Pagodinho, Paulinho da Viola, Marisa Monte, Ubirani (Fundode Quintal), Regina Case e outros. Até Carlinhos Brown já veio aqui em um aniversário. Ele ficou encantado com a mesa.
Quem seria o melhor intérprete de samba hoje em dia?
Todos são bons. Cada um com seu timbre de voz. O Jamelão faz falta, ele era “hours concours”.
Como surgiu a Feijoada da Tia Surica?
Sempre fiz feijoada aqui em casa em comemoração ao meu aniversário, de amigos até no lançamento do disco Tudo Azul (1999). A idéia surgiu em um dia impróprio. No dia do sepultamento de Argemiro, integrante da velha-guarda. Estávamos no cemitério eu, Marquinho de Osvaldo Cruz, Pedro Manacéia, Áurea e Cristina. Na conversa decidimos fazer um movimento dentro da Escola que estava se tornando um gigante adormecido. Queríamos resgatar a família portelense que estava muito afastada. Levamos a proposta para Carlinhos Maracanã e ele aceitou.
A inauguração foi em 2004 no bar da Tia Vicentina (irmã de Seu Natal). Tem até aquela música "Provei do famoso feijão da Vicentina. Só quem é da Portela é que sabe que a coisa é divina", cantarola Tia Surica o trecho do Pagode do Vavá.
Neste dia vieram poucas pessoas - em torno de 300 pessoas. Mas foi um momento muito emocionante. Cantamos o hino da Portela de mãos dadas. Muitos choraram, porque que não se viam há muito tempo. Logo depois, passamos para a quadra, pois o encontro começou a se estender. Hoje em dia temos de 3.000 a 4.000 pessoas na feijoada.
Como a crítica recebeu o CD Fina Flor?
O CD foi produzido pelo Paulão 7 Cordas e traz a elite da samba (Monarco, Casquinha, Aniceto, Chico Santana, Manacéa). Só que acho que deveriam ter trabalhado melhor o CD. A crítica não teceu comentários.
Consegue viver do samba?
O samba é complemento financeiro, vivo da pensão do meu pai que era ferroviário.
Algum recado para os novos sambistas?
Só em ver essa garotada tocando samba é uma satisfação muito grande.
O que está achando do Governo Dilma?
Não me aprofundo em política, mas para mim está bom. A Dilma só tem um ano, ainda não deu para fazer tudo. Acho que foi até tarde demais termos uma mulher na presidência, ela merecia. Gosto da Dilma, ainda assim sou mais o Lula, ele é mais humano. Se ele for candidato voto de novo pela origem, carisma. Gosto do Lula. Convivi mais com ele, já fomos a Brasília com a Velha Guarda e ele esteve na Portela.
Como viu a Rio + 20?
Acho que valorizou no nosso país, nossa cidade. A minha expectativa é boa.
Quais são seus projetos em andamento?
Estou produzindo meu segundo disco que quero lançar antes do fim de ano, em setembro ou outubro. As músicas são de Argemiro, Candeia, Teresa Cristina, Monarco. Três inéditas e algumas que eu vou regravar.
Tem algum sonho?
Meu sonho é que Deus me dê mais uns anos de vida. E bastante trabalho e paz.
Junho 2012
Entrevista realizada por Ana Cristina Tavares e Ricardo Rabelo