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  • Exclusivo: relato de uma brasileira em confinamento em Portugal

    Da Redação em 05 de Abril de 2020    Informar erro
    Exclusivo: relato de uma brasileira em confinamento em Portugal

    Sou brasileira e atualmente vivo em Portugal, na região metropolitana de Lisboa. Sou psicóloga, pesquisadora e professora universitária. Isso influencia muito o meu cotidiano de confinamento, porque o confinamento em si não é grande coisa. A grande coisa é o que fazemos com ele e como nos sentimos quando temos – sem optar – que ficar em casa.

    Se você é daquelas pessoas que sente ‘coceira’ pra fazer uma coisa exatamente porque a tal ‘coisa’ lhe foi barrada, você provavelmente é alguém que sofre com o confinamento. Ou você pode ser uma das pessoas que sempre sonhou em ter tempo para ficar em casa e agora descobre que não quer tanto tempo assim.  Ou, ainda, você é uma das pessoas em cuja casa não se pode confinar porque não há espaço suficiente para os membros da família se distanciarem uns dos outros, ou seja, você já vive obrigatoriamente em constante aglomeração.

    Eu vou contar uma estória um pouco diferente, a começar pelo lugar: aqui. A região metropolitana de Lisboa é a maior concentração populacional de Portugal, um lugar onde vírus de rápida transmissão, como o coronavírus, podem fazer a festa. Nós vivemos a cerca de 15 Km do centro da capital, o que é considerado distante nos padrões locais.
     
    Embora seja uma região periférica, a noção de periferia muda muito em relação ao que vemos no Brasil. Na nossa periferia, temos saneamento básico, coleta seletiva de lixo, calçamento apropriado nas ruas e nas calçadas, energia elétrica e ampla oferta de pequenas vendas familiares, pequenos varejões que na verdade são quase mini-mercados, e pequenos mercados que são subsidiários de grandes redes. Também temos farmácia, padarias e restaurantes, os últimos atualmente abertos somente para entregas.

    Também temos muitos idosos. Em Portugal, 21% da população é idosa (no Brasil é 14%), então encontramos com os velhinhos a passear os cães, almoçando nas padarias e lanchonetes, nos bancos, nos restaurantes, nas praças, nos ônibus, nas aulas de Yoga, onde quer que se vá. Os idosos são parte importante da população e da sociedade. E são bastante exigentes nos seus direitos.

    O governo português é socialista. Isso significa que se espera dele que cuide da população em todas as suas camadas. Coerentemente, as decisões sobre quarentena e distanciamento social começaram cedo e com o apoio de todos os setores do governo e de todas as corrente partidárias – a direita inclusive exigiu que os bancos retribuam o que a sociedade lhes deu na crise de 2008! (Para ouvidos brasileiros, isso é inacreditável, né?!)

    Essa coesão e coerência nas falas dos políticos e governantes transmitiu à população confiança de que ficar em casa e distanciar-se dos outros era o certo a fazer. Os números já mostram Portugal como um exemplo de controle da pandemia, mas os cuidados continuam altos, principalmente com a chegada da Páscoa, quando as famílias habitualmente se reúnem.

    Na nossa rotina, pouco mudou. Somos um casal sem filhos e com uma gata, vivemos longe das nossas famílias, trabalhamos a maior parte do tempo em casa, nosso principal lazer é caminhar no calçadão e às vezes jantar num restaurante. Nosso apartamento é pequeno, mas tem uma varanda ensolarada que nos permite sentir como se estivéssemos fora.
     
    Dada a obediência das pessoas às orientações governamentais, as medidas de circulação não são tão restritivas, então ainda podemos fazer as nossas caminhadas. Os mini-mercados continuam funcionando, mas não há filas neles, então nossa alimentação continua regular e boa. Embora inicialmente tenha havido uma corrida pelo papel higiênico, coisa que eu nunca entendi, isso já se normalizou. As pessoas que fizeram estoques nos primeiros dias de anúncio de pandemia acabaram vendo que foi bobagem, porque se cada um simplesmente se detiver com aquilo que precisa, haverá para todos, sem filas, demoras, transtornos e escassez.

    Entretanto, um impacto notável desse confinamento no meu dia-a-dia é a busca por notícias do que se passa no Brasil. Nossas famílias, afinal, continuam aí. As disputas políticas individuais em torno da pandemia, a despeito da necessidade urgente de ações concertadas entre governantes e políticos de todos os níveis, o profundo descrédito da população quanto às orientações sanitárias, a corrida pela compra excessiva de insumos para fazer estoques pessoais, em absoluto egoísmo e ignorância de que se a proteção não estiver disponível a todos não estará disponível a ninguém (não se iluda!), o preconceito e piadas sobre idosos (disseminados inclusive por outros idosos) têm me causado muito pesar e receio quanto ao futuro próximo.

    Bem, esse é o relato de um confinamento, o meu. Há muitos outros.

    Ariane Agnes Corradi
    5 de abril de 2020
     


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