A eleição de Lula significa a retomada do caminho democrático e esse caminho, que já começa a ser desbravado, passa pela retomada do desenvolvimento cultural do país. A retomada do cinema e do audiovisual brasileiro se dará no contexto da retomada das políticas culturais e da reconstrução do Ministério da Cultura.
A experiência dos últimos quatro anos mostrou como um governo antidemocrático e a inexistência do MinC é capaz de paralisar a política do cinema. Digo isso porque a Ancine não foi extinta, mas ficou travada, sem recursos, sem iniciativas e incapaz de dar sua contribuição para o desenvolvimento do cinema e do audiovisual. O fluxo de financiamento do audiovisual foi interrompido, a regulação abandonada, a cota de tela deixou de ser implementada pela primeira vez desde sua criação por Getulio Vargas.
O governo que agora termina deixou o mercado audiovisual brasileiro sem regras, sem estímulo ao produto brasileiro, e deixou um mercado desregulamentado, onde impera a lei da selva, submetendo esse bilionário mercado à lei dos mais fortes.
Vimos igualmente os mecanismos de apoio e incentivo ao audiovisual serem questionados e minados pelo governo brasileiro, justamente aquele que deveria zelar, defender e implementar esses mecanismos e essas políticas construídas ao longo de décadas e de gerações de cineastas e produtores.
Falei sobre isso no Festival de Brasília, espaço de expressão da consciência histórica do cinema brasileiro, que no decorrer das suas muitas edições constituiu uma massa crítica essencial para o cinema e para a consolidação do Brasil como nação.
Foi no Festival de Brasília, criado entre outros por Paulo Emilio Salles Gomes, que vimos sempre ebulir a afirmação do direito do Brasil produzir suas imagens, sua soberania e seu destino.
Retrocedemos nos últimos 4 anos à República Velha, antes dos anos 1930, quando o mercado cinematográfico brasileiro era terra de ninguém, entregue aos interesses dos grandes estúdios de cinema estrangeiros, sem qualquer proteção legal ou econômica ao produtor nacional. Quando a concepção hegemônica era a de que o Brasil é uma grande fazenda, um país eminentemente rural e sem pretensões na modernidade.
Época em que o mercado de cinema no Brasil era conformado para ser mero mercado consumidor, fornecedor não de filmes brasileiros, mas de espectadores, e os governos e leis eram pautados pelos lobbies do cinema americano.
É fundamental retomar o tripé da política audiovisual brasileira, com o fortalecimento do Conselho Superior do Cinema, que foi esvaziado. Vivemos uma situação absurda, semelhante a da república velha, quando vemos que o Conselho Superior entregue para representação de empresas, ou de lobistas que representam não a cadeia produtiva e artística nacional, mas, paradoxalmente, os que competem localmente com o produto brasileiro.
O audiovisual e o cinema em particular, além da sua importância como fato cultural e político, capaz de contribuir para o fortalecimento da nação e para o desenvolvimento cultural do povo brasileiro, é um mercado estratégico, gerador de dividendos e emprego, por isso pergunto: como o governo brasileiro foi capaz de entregar a construção dessa política para empresas estrangeiras?
O governo deve dialogar com todos, mas não pode se submeter aos que disputam o nosso mercado com o Brasil.
O Conselho Superior deve voltar a ter representação majoritária dos produtores, dos distribuidores, dos exibidores, das TVs, das universidades, de toda a cadeia produtiva e artística nacional.
E com a retomada do papel da SAV, que foi também, nestes tempos sombrios, perdendo total importância.
A Cinemateca precisa ser valorizada como instrumento central da política de preservação da memória audiovisual brasileira e capacitá-la para que promova e disponibilize para as novas gerações esse acervo maravilhoso, testemunho da capacidade criativa do nosso povo.
É preciso retomar a concepção de que o audiovisual é mercado, mas é arte e cultura. É elemento de soberania, de renovação de linguagem e do imaginário e promoção da língua portuguesa. Precisamos também refazer a imagem do Brasil no mundo e o nosso cinema e o audiovisual será fundamental para tirar o Brasil do isolamento. Com esse tripé, coordenado por um Ministério da Cultura recomposto e renovado, a política audiovisual pode voltar a enfrentar os desafios contemporâneos do audiovisual e do cinema.
Antes da catástrofe que se abateu sobre país e a cultura nos últimos anos, o streaming já era uma realidade, mas com os anos e com a pandemia, ele rapidamente se transformou na forma dominante de distribuição de conteúdo, aqui e mundo afora.
Há dez anos atrás o Brasil via sua produção audiovisual crescendo e tinha umas das melhores leis de audiovisual do planeta, a lei da TV paga.
Nesses últimos 6 anos, o Brasil ficou pra trás, o governo brasileiro se omitiu, quando não remou contra nosso cinema, ou saiu de cena e deliberadamente foi deixando o cinema e o audiovisual ao Deus dará, enquanto a Europa e o mundo desenvolvido avançou em leis para o streaming que regulam e estimulam a produção nacional, garantindo regras de comércio justo, de arrecadação para o financiamento da produção e a justa remuneração de produtoras e dos artistas e técnicos envolvidos.
Nas poucas vezes em que o governo brasileiro que agora se encerra se moveu nesse tema foi para atender o interesse de conglomerados estrangeiros e de suas estratégicas fusões em tempos recentes, e isso foi feito atropelando nossas instituições e desrespeitando nossa própria legislação, que inibe o monopólio.
É visível que, com uma mão estrangulam o cinema e o audiovisual brasileiro e com a outra querem presentear toda essa infraestrutura instalada do nosso cinema e audiovisual para nos tornarmos meros prestadores de serviços para essas megas empresas que querem monopolizar o cinema e o audiovisual no mundo. Nada contra prestar serviços, contanto que seja uma atividade complementar à produção do nosso cinema e do nosso audiovisual.
O novo governo Lula irá retomar com as políticas de apoio e incentivo ao cinema e ao audiovisual, incluindo a valorização de um mercado diverso, justo, e irá promover a regulação do streaming, como toda a Europa já vem realizando. Vamos recolocar a indústria audiovisual brasileira no sec XXI, transformando o Brasil em grande produtor audiovisual no streaming, gerando receitas e divisas. E iremos propor a prorrogação das cotas da Tv paga e a retomada do acompanhamento e fiscalização que foram desmontados.
Sabemos que muitos cineastas e produtores foram molestados, muitas vezes censurados com subterfúgios e desculpas de ordem burocrática. Mais uma vez na história brasileira, a cultura foi criminalizada para inibir o pensamento crítico, para ferir de morte empresas nacionais e atingir os artistas e a liberdade de expressão. Prestação de contas é algo a ser levado a sério, mas quando ela é utilizada como desculpa para interromper e desconstruir todo um mercado, devemos denunciar que há algo de muito errado.
Precisamos retomar o projeto da TV pública, que teve sua missão distorcida, foi aparelhada, transformada e rebaixada a canal de propaganda das ações oficiais de governo. A Tv pública deve ser uma Tv independente, pública e republicana, voltada para a sociedade com uma programação de qualidade, que não se mede apenas por audiência, mas por sua sensibilidade e inteligência, pela força estética e de linguagem e capacidade informativa....e que seja um instrumento de acesso ao conteúdo audiovisual brasileiro e regional. A EBC precisa voltar a ser parte de uma política pública de cultura brasileira.
É preciso retomar o diálogo com o mundo, as linhas de apoio para integrar a produção brasileira com outros países, seja na Europa, na Ásia, nos Estados Unidos e na América Latina e com os povos africanos de língua portuguesa. Tudo isso foi interrompido dentro de uma lógica de que o Brasil não precisava dialogar culturalmente com ninguém e que as quinquilharias do livre mercado cultural nos bastariam. É fundamental avançarmos na direção de um mercado comum para os filmes e conteúdos latino americanos.
E finalmente, quando fui Secretario de Cultura em SP criamos a Spcine, uma iniciativa bem sucedida e bem avaliada que vem sendo inspiração assim como foi a Riofilme para iniciativas de política públicas em outras regiões do Brasil. Temos que voltar a falar com governadores e prefeitos para que a política audiovisual volte a ter um olhar a partir destas regiões e para todo o território brasileiro, retomando o programa de co-investimento que deu tão certo.
Existe cinema e audiovisual de qualidade sendo feito hoje em todas as 5 regiões. Um filme acreano venceu o ultimo premio de melhor filme em Gramado e um filme feito na periferia de Belo Horizonte vai representar o Brasil no Oscar. Existe cinema de qualidade em todos os territórios, em todas as populações, incluindo os indígenas, os negros, e a juventude periférica.
O audiovisual é um poderoso instrumento de desenvolvimento territorial e social e de fortalecimento da nossa rica diversidade cultural. E precisa ser pensado como um componente indispensável de educação e cidadania, para que todo brasileiro e brasileira possa ter acesso aos repertórios essenciais para a vida democrática no século XXI.
O grupo de trabalho da transição está reunindo as informações para ajudar o presidente Lula na retomada de um Ministério da Cultura e para que o audiovisual seja percebido como a linguagem de uma nova época, de um novo tempo e de um novo ciclo de cidadania e desenvolvimento do Brasil e para que a democracia se instale e se consolide definitivamente nesse país.
Publicado no O Globo