O ar dentro do Palácio Imperial tinha aquele cheiro peculiar que apenas os edifícios do século XIX possuíam: uma mistura de madeira polida, papel envelhecido e a fumaça residual dos lampiões.
André ajustou o pequeno dispositivo preso à parte de trás de sua orelha direita, certificando-se de que o implante neural estava funcionando corretamente. O transponder temporal indicava 12 de novembro de 1889, três dias antes da queda do Império Brasileiro.
Os guardas o seguravam com firmeza pelos braços, arrastando-o pelo corredor ornamentado. André não havia planejado uma entrada tão dramática, mas o dispositivo de camuflagem falhou no momento crítico, fazendo-o materializar-se diretamente nos jardins imperiais, à vista de todos.
"Sua Majestade Imperial não tem tempo para lunáticos!" vociferou o oficial de alta patente que caminhava à frente. "Diga-nos quem o enviou, ou passará os próximos anos contemplando o interior de uma cela!"
"Sou André Mendes Tavares, nascido em 2 de maio de 1993, em São Paulo, Brasil. Venho do ano 2025 e preciso falar com Dom Pedro II sobre um assunto de extrema urgência nacional," repetiu André pela terceira vez, mantendo a voz calma apesar das circunstâncias.
Os guardas trocaram olhares cépticos enquanto o empurravam para dentro de uma antessala ricamente decorada. A porta oposta se abriu lentamente, revelando a figura imponente que André havia visto apenas em livros de história e nos raros hologramas históricos dos museus digitais.
Dom Pedro II, aos 63 anos, era ainda uma presença majestosa, apesar da barba grisalha e das olheiras que denunciavam seu cansaço crônico. O monarca dispensou os guardas com um gesto, mantendo apenas o oficial e dois atendentes próximos.
"Então você é o homem que alega vir do futuro," disse o imperador, observando André com olhos cansados mas perspicazes. "Conte-me sua história fantástica."
André respirou fundo, sabendo que tinha apenas uma chance.
"Majestade, em três dias, no dia 15 de novembro, o Marechal Deodoro da Fonseca liderará um golpe militar que derrubará o Império. A família imperial será forçada a partir para o exílio em Portugal, e o Brasil se tornará uma República. O senhor nunca mais retornará à sua pátria, morrendo em Paris dois anos depois."
Um silêncio pesado dominou a sala. Foi o oficial quem o quebrou com uma risada desdenhosa.
"Que absurdo! Deodoro é um monarquista leal! Vossa Majestade, este homem deve ser algum republicano desesperado buscando causar confusão."
Dom Pedro ergueu a mão, silenciando o oficial.
"Suas roupas são estranhas, senhor Tavares. E seu sotaque, embora você fale um português correto, tem uma cadência peculiar."
"Posso provar que venho do futuro," disse André, lentamente levando a mão ao implante neural. "Este dispositivo me permite falar e entender dezenas de idiomas instantaneamente."
Antes que os guardas pudessem detê-lo, André ativou o módulo linguístico.
"Je suis venu du futur pour vous avertir, Votre Majesté," disse em francês perfeito, antes de mudar para alemão, "Die Republik wird in drei Tagen ausgerufen werden," e então para russo, árabe, japonês, e finalmente para o tupinambá, língua indígena que Dom Pedro II havia estudado com paixão.
O rosto do imperador demonstrou primeiro surpresa, depois fascínio. Ele respondeu em francês e alemão, testando André, que conversou fluentemente. Quando o viajante falou em tupinambá, citando textos que o próprio Pedro II havia traduzido, o monarca ordenou que todos se retirassem da sala.
Quando ficaram a sós, o imperador levou a mão à têmpora, massageando-a.
"Estas dores me atormentam há anos," murmurou. "Os médicos pouco podem fazer."
André percebeu a oportunidade. De seu bolso, retirou um pequeno frasco.
"Em minha época, isto é um analgésico comum. Duas gotas em água aliviarão sua dor em minutos, sem os efeitos entorpecentes do láudano."
Desconfiado, mas intrigado, o imperador chamou um atendente e solicitou que trouxesse água. Após André demonstrar a segurança do remédio tomando uma dose ele mesmo, Dom Pedro aceitou experimentá-lo.
Vinte minutos depois, o monarca experimentava algo que não sentia há anos: a ausência de dor.
"Notável," murmurou. "Verdadeiramente notável. Agora tenho que considerar seriamente suas alegações, senhor Tavares. Mas por que veio? Para mudar o curso da história?"
André balançou a cabeça.
"Não posso mudar o que vai acontecer, Majestade. A física temporal não permite alterações significativas no fluxo histórico. Vim como observador, para documentar este momento crucial para os arquivos históricos."
"Então minha queda é inevitável," constatou o imperador com surpreendente serenidade.
"O senhor é reconhecido, no futuro, como o maior estadista que o Brasil já teve," respondeu André. "Sua dedicação à ciência, à educação e à abolição da escravidão são lembradas e celebradas. Enquanto o Brasil se debaterá por décadas para encontrar estabilidade política após sua partida."
Dom Pedro ficou em silêncio por vários minutos, absorvendo a informação.
"Mostre-me algo mais," pediu finalmente. "Algo do seu tempo."
André hesitou. As regras de interação temporal eram claras sobre não revelar tecnologias avançadas. Mas decidiu fazer uma exceção controlada. De outro bolso, retirou uma pequena esfera metálica.
"Isto é um projetor holográfico. Contém imagens do Brasil do futuro."
Ativando o dispositivo, André projetou no ar imagens tridimensionais do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília – a capital que ainda nem existia – e outras cidades brasileiras em 2025. Mostrou arranha-céus, automóveis, aviões, e pessoas vestindo roupas modernas. Com cuidado, incluiu algumas imagens do próprio Dom Pedro II, retiradas de livros de história e museus.
O imperador observava tudo com os olhos marejados, especialmente ao ver estátuas de si mesmo em praças públicas e seu nome em escolas, bibliotecas e institutos científicos.
"Então não serei esquecido," murmurou.
"Jamais, Majestade."
Naquela noite, André foi instalado em um quarto no palácio. Durante os dois dias seguintes, teve longas conversas privadas com o imperador, que absorvia avidamente as informações sobre o futuro do Brasil e do mundo, fazendo anotações em seu diário pessoal.
Na véspera do golpe, enquanto o palácio fervilhava com rumores sobre movimentações militares, Dom Pedro II chamou André para uma última conversa.
"Decidi não resistir," declarou o monarca. "Suas informações confirmaram o que meu coração já suspeitava. O tempo da monarquia no Brasil chegou ao fim. Lutar significaria apenas derramamento de sangue brasileiro."
"É uma decisão sábia, Majestade."
O imperador entregou a André um envelope lacrado.
"Escrevi estas memórias para você levar de volta ao seu tempo. Considere-as minha contribuição para seus arquivos históricos."
André sentiu um nó na garganta ao aceitar o envelope.
"É hora de eu retornar," disse, verificando o transponder temporal. "Minha janela de extração se abre em trinta minutos."
Dom Pedro assentiu, estendendo a mão para um último aperto.
"Em sua época, senhor Tavares, o Brasil finalmente encontrou seu caminho? Tornou-se a nação que eu sonhei?"
André hesitou. Como explicar os ciclos de progresso e retrocesso, democracia e autoritarismo, prosperidade e crise que marcaram a história brasileira?
"O Brasil continua tentando, Majestade. Ainda estamos construindo o país que o senhor sonhou. Mas nunca deixamos de tentar."
O imperador sorriu tristemente.
"Então há esperança. É tudo que posso pedir."
O dispositivo de transporte temporal começou a vibrar levemente contra a pele de André, indicando que a janela de extração estava se abrindo.
"Adeus, Majestade."
"Adeus, homem do futuro."
André ativou o transponder e sentiu a familiar sensação de dissolução molecular enquanto o mundo ao seu redor se desfazia em partículas de luz.
Quando reabriu os olhos, encontrava-se no laboratório de pesquisa histórica em Brasília, ano de 2025. Os técnicos correram para auxiliá-lo enquanto os sistemas computacionais verificavam sua integridade física e mental após a viagem.
"Missão cumprida?" perguntou a Dra. Alvarez, diretora do programa.
André entregou-lhe o envelope lacrado de Dom Pedro II.
"Mais do que isso," respondeu. "Ele sabia. Sabia o que ia acontecer e escolheu não resistir para evitar um conflito civil."
Semanas depois, historiadores do mundo inteiro reuniram-se para a abertura oficial do envelope, preservado em condições especiais. O documento revelou-se ser não apenas memórias, mas uma carta endereçada às gerações futuras, detalhando os pensamentos e esperanças de um monarca à beira da deposição.
A última página, contudo, continha algo inesperado: um desenho detalhado do implante neural de André, junto com anotações sobre seu funcionamento e uma fórmula química – a do analgésico que André havia compartilhado.
No canto inferior da página, uma nota escrita à mão pelo imperador: "Para quando vocês o inventarem".
Os historiadores olharam perplexos para André, que sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Lembrando-se da sua aula de história avançada, recordou que o tataraneto de Dom Pedro II havia se tornado um neurocientista renomado no início do século XXI, contribuindo com as pesquisas iniciais que eventualmente levaram ao desenvolvimento... do implante neural de tradução simultânea.
André compreendeu então: não havia viajado ao passado para observar a história.
A história havia usado ele para completar seu próprio círculo.
Por: Odracir Olebar