O Rio de Janeiro do final do século XVIII era uma cidade de contrastes brutais, onde o luxo da corte se misturava à miséria nua das ruas.
Mas para o Marquês do Lavradio, homem de ideias iluministas, a convivência era insuportável. A Rua Direita, artéria pulsante da colônia, não poderia mais abrigar o que ele considerava uma "chaga exposta": a venda de seres humanos a céu aberto, entre o tropel de cavalos e o passo das senhoras da sociedade.
A ordem foi dada com a frieza de quem remaneja móveis em uma sala de estar. O “espetáculo”, como ele o chamara, precisava sair do palco principal. O destino escolhido foi o Valongo. Na época, não passava de um brejo insalubre, um recanto esquecido entre o mar e o morro, longe dos olhos sensíveis da elite administrativa.
Foi ali, naquele pedaço de terra úmida batido pela maresia, que a geografia da cidade mudou para sempre. Onde antes havia apenas mato e silêncio, ergueram-se rapidamente os barracões de engorda e venda. O Valongo transformou-se em um complexo comercial de escala industrial, com trapiches, lazaretos e o infame Cemitério dos Pretos Novos ali perto, para aqueles que não resistiam à travessia ou aos maus-tratos logo após a chegada.
A transferência “higienizou” a Rua Direita, que pôde enfim ostentar sua vocação para o comércio fino e os desfiles processionais. Mas, ao empurrar o mercado para a periferia do centro, o Marquês criou, inadvertidamente, o maior porto negreiro da história das Américas.
A confussão da Rua Direita deu lugar ao lamento contido nos armazéns do Valongo. A estrada que ligava o cais à cidade, batida pelos pés de milhares de recém-chegados, ganhou o nome do local.
Décadas mais tarde, numa tentativa de apagar a memória daquela dor incrustada nas pedras, a via seria rebatizada. Mas, sob o asfalto e os paralelepípedos da atual Rua Camerino e arredores, a história do Valongo permanece, talhada na fundação do Rio de Janeiro.
O porto do Valongo foi redescoberto durante obra de reforma da área portuária totalmente aterrado. Hoje serve como memorial histórico, uma testemunha viva do passado escravagista do país.