O cavaquinista Eduardo Gallotti é fundador de várias rodas de samba no Rio de Janeiro e também premiado compositor de sambas de blocos de carnaval. Ex-estudante de biologia descobriu aos 20 anos o gosto pelo riscado e nunca mais parou. Entre as rodas que fundou, Candongueiro, Sobrenatural e Mandrake, esta última uma das primeiras na Zona Sul na metade da década de 80. Mais recentemente comandou a roda dos Democráticos e Anjos da Lua. Gallotti ganhou ainda grande destaque compondo sambas premiados de blocos como "Simpatia é quase Amor", "Suvaco do Cristo", "Bloco da Segunda" e "Barbas".
Aos 54 anos, em entrevista ao Bafafá, Gallotti conta que aprendeu a tocar cavaquinho sozinho. E revela o segredo para quem está começando: “Samba se aprende em roda de bar, é a melhor escola”. Questionado se o samba é eterno, não titubeia: “Nenhum outro gênero musical tem essa melodia, essa riqueza musical”. Diz ainda não ter maiores ambições. “Não quero ser um artista de palco, quero continuar sobrevivendo da roda de samba”.
Chegou a estudar música?
Sou autodidata, mas estudei cavaquinho dois anos com Henrique Cazes para pegar leitura de cifras e técnicas de acompanhamento. O Cazes tocava numa roda no Instituto dos Arquitetos que passei a frequentar. Conheci o Marcos Suzano, o Paulão 7 Cordas, o Rodrigo Lessa e toda uma geração de músicos que hoje está ai. Em pouco tempo já tocava legal e um camarada que frequentava a roda, o Eduardo Marques, me chamou para tocar em shows. Foi quando, aos 21 anos, que realmente comecei na noite e larguei a faculdade de biologia (riso). Tocava em vários bares, entre eles, o 19/02 em Botafogo e o Arco da Velha na Lapa. Ganhava uma grana legal, a concorrência era pouca e o dinheiro rendia mais (riso). Dava para beber todos os dias, hoje se você fizer isso você quebra.
Como é compor para bloco de carnaval?
Eu e o João Pimentel, o Janjão, temos dezenas de sambas ganhadores de blocos. O segredo para compor samba de bloco é você arranjar uma turma boa, sentar em torno de uma mesa e tomar um porre com um cavaquinho na mão escrevendo tudo que é besteira que sai. No dia seguinte pega tudo e começa a dar uma forma (riso). É mais gostoso fazer do que concorrer. A maioria dos sambas que eu fiz tinha mais três pessoas, mas já aconteceu de serem seis.
Você é um dos primeiros brancos da Zona Sul a tocar samba?
Na Zona Sul os brancos sempre tocaram samba, sempre existiu uma mistura. Botafogo e Catete sempre cultivaram isso. Mas, existe preconceito de várias formas. A cor da pele, por ser da Zona Sul, pelo repertório que você toca. No Candongueiro, uma casa que toquei de graça durante anos, tinha sambista que achava que não era merecedor ter um cartaz com meu rosto ao lado do Zé Ketti e outros bambas. Alguns até tapavam na hora de tocar (riso). O Mauro Diniz, que hoje é evangélico, não pode cantar palavras em iorubá. Quando ele ia cantar no Candongueiro tinham que tirar o meu cartaz da parede. Sofri preconceito sim. Eu usava brinco, tinha cabelo comprido (riso).
Como foi participar da fundação de várias rodas da cidade?
Fui nascido e criado em Botafogo e tinha contato com o Walter Alfaiate, Mauro Duarte e outros compositores do bairro. No meio da década de 80 passamos a tocar no bar Mandrake às terças-feiras. Toda uma geração de sambistas frequentava, inclusive Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Depois veio o Candongueiro, o Sobrenatural, o Empório, na Lapa. A roda dos Democráticos foi marcante, pois peitava os empresários da Lapa na questão dos ingressos. Alugávamos o espaço e ficávamos com a bilheteria. Teve ainda o grupo Anjos da Lua, ambos pararam porque a Lapa ficou impraticável nessa época e depois veio a crise.
E como está o mercado?
Hoje eu estou pior do que quando deixei a faculdade. Moro na casa da minha mãe. Durante o governo Lula ganhei muito dinheiro na noite e hoje estou passando a pior época. O dinheiro rendia mais. Acho também que as pessoas perderam o hábito de pagar pela música. Hoje querem botar dois reais no chapéu e pronto (riso). Mas, quando vem alguém conhecido, não deixam de pagar R$ 100 no Circo Voador. Por isso, não vejo muita identidade da nova geração com o samba como havia na geração anterior.
Quais rodas você destacaria?
O Samba do Peixe, que acontece uma vez por mês na Rua do Ouvidor. O Samba da Ouvidor, do Gabriel Cavalcante e o Samba na Fonte no Vaca Atolada. Hoje as rodas estão com repertórios parecidos. Na minha época era impossível sair de uma roda sem aprender um samba novo. O grande barato numa roda é misturar os temas, passear por autores, pela cadência. O samba de mesa tem a característica de ser sempre diferente. O samba transforma, já vi muita gente largar tudo por ele.
Rola um certo modismo?
Rola isso, samba de donos. Meses atrás fui numa roda e estava com um adesivo do Lula Livre e o dono da roda foi indelicado comigo. Como você convida alguém para uma roda e a destrata? Isso não rolava no Rio de Janeiro.
Qual dica daria para quem está começando?
Ir para o bar, o botequim (riso). Samba se aprende em roda de bar. É uma grande escola, tocando no acústico mesmo. Noventa por cento do meu repertório aprendi assim, inclusive sambas que nunca foram gravados que irão embora comigo. Outra coisa importante: que nunca falte o elemento humor. A roda tem de ter seu momento alegre e irreverente. Não pode ser só melancólico.
O samba é eterno?
Acho que sim se o Rio e o Brasil resistirem a esse desmonte cultural. O samba vai permanecer na mão dos apaixonados. Nenhum outro gênero musical tem essa melodia, essa riqueza musical.
Como explica a bossa nova ter estagnado?
A bossa nova na verdade não tem diferença com o samba. A bossa nova foi um jeito de tocar. Ganhou projeção nacional em detrimento do samba. Se você olhar bem, as músicas que mais fizeram sucesso na bossa nova são sambas. De Wilson Batista, Geraldo Pereira.
Como foi ter o cavaquinho roubado?
Eu tinha ele há 30 anos. Fui tocar num evento na Praça São Salvador e deixei meu cavaquinho num canto do coreto. Alguém se aproveitou e roubou. Na verdade acabou que o cavaquinho se libertou de mim.
Você tem alguma utopia?
Não quero ser um artista de palco, quero continuar sobrevivendo da roda de samba.
Entrevista concedida a Ricardo Rabelo, editor do Bafafá.
Julho de 2018
Foto: Paulo Bastos