A história da ocupação urbana Lapa começa em 1751, quando foi fundada a Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro (daí o nome do bairro), à margem da então Lagoa do Boqueirão.
Suas festas e quermesses passaram a atrair várias pessoas e alguns armazéns se instalaram no entorno. O número de casas comerciais da região aumentou significativamente com a transferência da capital do Brasil, de Salvador para o Rio, em 1763, pois vários comerciantes portugueses se fixaram por ali.
O adensamento vertiginoso da área só ocorreu mesmo com a vinda da família real, em 1808, quando a Lapa e o Caminho do Catete disputavam a preferência de moradia dos aristocratas que chegaram ao Rio. Em 1810, os padres carmelitas também passaram a promover a festa do Divino Espírito Santo, com barraquinhas armadas no Largo da Lapa. O evento durava cinco semanas, atraía muita gente e acabou se transformando no mais importante festejo popular da época, na cidade.
Em 1838, a região contava com 6.500 habitantes e, em 1888, esse número triplicara. A essa altura, quem tinha mais posses já havia se mudado para os emergentes bairros do Flamengo, de Botafogo e Laranjeiras, deixando a Lapa para pequenos negociantes – como vidraceiros, açougueiros e barbeiros – e camadas mais pobres da população, algumas vezes instaladas nos decadentes casarões aristocráticos transformados em casas de cômodos e cortiços.
No final do século XIX, os botequins que ficavam abertos durante a noite começaram a fazer a fama da Lapa como lugar de boemia.
A abertura da Mem de Sá ocorreu no início do século XX, no contexto das grandes reformas urbanas promovidas durante a gestão do então prefeito Pereira Passos (1902-1906). Desde os tempos coloniais, a Estrada de Mata-Cavalos (atual Rua do Riachuelo) era a principal via de ligação do Centro com os caminhos que levavam para o Engenho Velho (Tijuca) e as diversos cercanias ao Norte.
Para construir a nova avenida, Pereira Passos usou os métodos do bota-abaixo, com intimações que davam pouquíssimos dias para as famílias abandonarem seus lares.
Casas, casebres e cortiços foram demolidos em poucas semanas, junto com o arrasamento do Morro do Senado. Os destroços da velha colina, cujo cume ficava na altura da atual Praça da Cruz Vermelha, serviram para aterrar o que ainda restava de alagadiços na Lapa, além de toda a região portuária, que, na época, era entrecortada por várias pequenas enseadas.
A Mem de Sá foi inaugurada em 1906 junto com o primeiro lampadário ornamental do Rio de Janeiro. Fixado no Largo da Lapa, era um ícone da modernidade na cidade, onde o serviço de luz elétrica nas ruas havia chegado em 1904. Pela avenida também passou a circular outro grande símbolo do progresso: o bonde movido à eletricidade.
A boemia e seus personagens
A chegada da energia elétrica impulsionou o movimento noturno da cidade. O tipo de boemia que se consolidou na Lapa relaciona-se com as reformas de Pereira Passos, que expulsou as camadas mais baixas da população do eixo da Avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada pouco antes da Mem de Sá e transformada na grande vitrine da capital da jovem República. A consequência dessa política urbanística foi a criação de um cinturão de pobreza em torno do centro da cidade.
Os teatros, cinemas, cafés, clubes e restaurantes das praças Floriano (Cinelândia) e Tiradentes (que logo entraria em decadência) eram frequentados pelas camadas mais altas e médias: funcionários públicos, empresários, comerciantes, fazendeiros... Mas uma outra face do lazer noturno – cabarés, botequins, gafieiras e inferninhos – passou a florescer na Lapa, Praça Onze e região portuária.
Numa das rondas da polícia de costumes que Madame Satã, exímio capoeirista, ganhou seu nome de guerra. Poucas semanas depois de ter vencido – com uma fantasia de morcego repleta de lantejoulas – um concurso promovido pelo bloco carnavalesco Caçadores de Veado, foi preso junto com outros homossexuais, nas proximidades do Largo da Lapa. Ao ser indagado sobre qual era seu apelido e dizer que não tinha, o policial perguntou se não não era o vencedor do “concurso das bichas” (como se dizia na época), vestido de Madame Satã.
É que o policial associou a fantasia de morcego ao figurino da atriz que protagonizava um filme americano homônimo, que fazia sucesso no Rio, na época. E assim, nasceu o codinome mais célebre do bairro.
Com a Lei das Contravenções Penais de 1941, voltada para a manutenção da ordem político-social e dos costumes, a repressão policial aumentou e a Mem de Sá e toda a Lapa testemunharam o fechamento de seus cabarés, pensões de quartos de hora, inferninhos...
A decadência tornou-se inevitável. A boemia tomou outro rumo, o de Copacabana, ganhando novos ares de modernidade.
Mas a Lapa e seus malandros já estavam eternizados na memória e identidade dos cariocas.
Texto: Márcia Pimentel/Multirio